Mais para meio dormido que meio acordado, quando a noite já se retirara, mas o dia ainda hesita em se definir, apareceu na sombra incerta de meu quarto, tais as tábuas de Moisés, a lista daquilo que eu não poderia mas deveria ter sido durante minha vida. Estaria o subconsciente questionando minhas escolhas existenciais em finzinho de carreira?
Deveria ter
sido um grande pianista, um novo Horowitz, mas dois anos de gamas e solfejo
provaram que não tinha a menor aptidão. Cantor de ópera, herdeiro de Chaliapine?
Nem na Praça Cairu deserta em tempo de covid. Nunca soube em que tom minha voz
corria menos perigo de desafinar.
Deveria ter
sido banqueiro. Entendam: banqueiro, não bancário. Estou falando do cara que
tem seu escritório lá em cima, no último andar com vista panorâmica, adega de
vinhos raros e um elevador perfumado só para ele. Mas nunca soube juntar mais
de cinco mil cruzados e mesmo assim por pouco tempo.
Romancista? Desde
criancinha gosto de escrever. O drama é não ter a mínima imaginação. As vezes em
que tentei dar uma de Tolstói resultaram em redondo fracasso. O máximo de
minhas capacidades literárias se resume em pequenas crônicas da vida quotidiana
e curtos devaneios. Ultrapassar três mil toques – incluindo os espaços – é
aventura fadada ao desastre.
Grande
matemático. Um Grigori Pelerman. Isso sim foi meu desejo mais profundo, minha
frustração. Correr o planeta dando conferencias sobre o mundo encantado das
cifras, equações e expressões algébricas, explicar a conjectura de Poincaré e
as caraterísticas da circunferência.... Que viagem! Sem contar que cabeça
matemática navega melhor na filosofia, cria laços particulares com Bach e é até
capaz de construir órgãos en chamade.
Tampouco
poderia ter sido um navegador solitário tipo Alexei Belov. Além de enjoar com a
mínima onda - me lembro de um casal de portugueses amigos que me levou de
veleiro até o Morro de São Paulo; só levantei para ver uma baleia passar - sou
incapaz de usar uma bússola. Quanto a me orientar pelas estrelas, nem sonhar.
Primeiro você só vê estrelas de noite fechada. De noite eu durmo. E quando
surgem as chuvaradas, como que é? Me satisfaço boiando em qualquer piscina de
fundo turquesa.
Deveria ter
sido alpinista. Vencer o Aconcágua antes do Everest e depois do pico Uhuru do
Kilimanjaro. Mas só de pensar na mochila pesada e no frio, neve e ventos
gélidos, tudo aquilo que odeio, francamente, não. Prefiro andar à toa pelas
orlas confortáveis e ensolaradas de Copacabana e Estoril.
Deveria
tomar banho, preparar o café e descer até o jardim para, panglossianamente,
arrancar ervas daninhas e colher algum bastão do imperador, estranha flor de
porcelana. Poderei também cuidar de minhas buganvílias, podando-as.
Nenhum comentário:
Postar um comentário