Os últimos
raios incendiaram as nuvens como se cortinas de uma ópera verdiana fossem. No
inverno, o sol desaparece mais cedo por trás de Salinas das Margaridas.
Agora é
noite. Negra, compacta, uniformizando o céu sem lua nem estrelas e o mar opaco
da baía onde piscam as luzes incertas dos cargueiros. Gosto deste momento que finge
ser definitivo, infinito.
Nas avenidas
da cidade baixa, o trânsito silenciou. Semáforos gerenciam inúteis ordens.
Verde pode, amarelo atenção, vermelho não pode. Mas por trás do alto muro, o
porto continua pulsando, guindastes carregando pesados contêineres numa
atividade permanente de onde o homem parece se ter ausentado. Para que portos
de que países irão as cargas de soja, algodão, cravos e canelas, frutas,
minérios, carnes, madeiras e talvez alguma droga cuidadosamente escondida? Na
minha velha poltrona de vime permanecerei, atento a estes sons maquinais,
complemento indissociável do trabalho portuário, a estas luzes que espantam o sono.
Mais tarde, bem mais tarde, o longo lamento de uma sirena me despertará, último
apelo para embarcar.
Vez ou
outra, abro a porta – abrir portas me dá tanto prazer! - a algum visitante.
Este, após ter examinado o grande bazar de salas sobrecarregadas de quadros,
livros e objetos, ao se aproximar da beira do terraço, talvez ouse queixar-se
dos galpões, caminhões e cascos enferrujados de velhas embarcações. Que pena,
este porto! Ficarei silencioso. Não argumentarei. O que você esperava? Uma
praia de areia alva bordada de coqueiros com baianas devidamente trajadas
sambando voltei americanizada? Na beira de uma cidade de três milhões de
habitantes e velha de cinco séculos?
Gosto de
viver a vida como ela é, longe das pieguices fantasiosas. Todo porto é vida.
Este, aqui e agora, palpitando aos meus pés, é um enorme coração. E logo ao
lado da feira de São Joaquim, ventre da Bahia. Dele, a cidade e o país nasceram.
Pedaço de história que se oferece, dia e noite, de graça. É só lembrar o
encontro das pesadas caravelas de velas roídas com as plumárias canoas, as
fragatas de Charles Darwin e Maximiliano de Habsburgo, futuro e azarento
imperador do México, do mercenário Pierre Labattut, os saveiros carregados da
cana de açúcar do Recôncavo e os silenciosos submarinos nazistas.
Mas meu
porto também é festa nas noites de verão, quando saem os imensos navios rumo a
outras ilhas, outros cheiros, outros ritmos. Passam bem debaixo de minha casa,
lentos, soberbos, enguirlandados de luzes, todas as cabines iluminadas, cintilando
de mil flashes. Um bolero escapa do convés superior no pisca-pisca da
discoteca. Viram à minha direita, contornando o quebra-mar a desaparecer
devagar. Na minha memória um quarteto de cordas toca um abafado “Amami,
Alfredo”.
Dimitri Ganzelevitch
A Tarde, sábado 21 Agosto 2021
Soberbo texto que ilumina o cotidiano. As coisas como elas são. Com sua beleza e sua trivialidade. São os olhos que iluminam o real.
ResponderExcluirQuem é este Dimitri?
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