Exposto ao sol impiedoso deste fim de março, enquanto o ônibus avança-não-avança, logo após entrar na Joana Angélica direção Nazaré, noto algo no passeio, encostado à parede. Este algo é um homem. Mas bem: um pedaço, uma parte de homem. Não tem braços, uma perna só. Perna? Nem isso. Uma extensão do tronco. Não deve ter fêmur nem tíbia, somente, talvez, cartilagem. Alguém o colocou naquele ponto, com um velho chapéu na frente para receber esmola. O tal chapéu estaria melhor na sua cabeça, já que o coitado vai ter que agüentar um calor insuportável durante ainda muitas horas. Adivinho este “alguém” sentado a pouca distância, observando seu ganha-pão provavelmente ameaçado por outros desamparados nestes tempos de crack. Levariam sem remorso as moedas jogadas por transeuntes incomodados pela terrível visão.
É a segunda vez em trinta e
cinco anos de vida brasileira que vejo tão deprimente espetáculo. A primeira
foi no fim dos anos 70, quando quase tropecei em um obstáculo inesperado no meio
da calçada do centro de Belém. Era um tronco com cabeça. Sem braços, sem
pernas. Um simples tronco com vida. Ainda hoje esta imagem me bofeteia, tal ato
culposo. Ainda hoje, me sinto absurdamente responsável por este pedaço de
paraense.
Mas voltemos ao centro de
Salvador onde cozinha lentamente ao sol tropical outro ser cuja face ainda
consegue sorrir, como se se tratasse de uma ótima piada, só para assustar quem
passa, uma simples cassetada, bem ao gosto daquele abominável gordão dos
domingos globais. Tento imaginar o antro sórdido onde este tronco será guardado
no fim do dia. Alguém lhe dá banho, satisfaz suas necessidades fisiológicas,
conversa com ele? Ele acredita em Deus? Tem família que o vem visitar? Quando
estiver doente, qual médico se debruçará sobre tanto infortúnio? Será que ele
tem o elementar direito de reclamar?
Antes do ônibus reiniciar a
caminhada, dou outra olhada, constrangido por minha mórbida curiosidade, por
possuir mãos para me agarrar nas curvas e pernas para sair quando quiser do ônibus.
A extensão carnuda servindo de perna termina num simulacro de pé. Nem meia tem.
Um pé de marionete, inacabado, dedos atrofiados salvo um dedão de aspecto
normal.
É neste instante que desvendo
uma ilógica possibilidade de felicidade. Naquele único dedão, um anel de metal
lavrado! Pode não parecer nada, não fazer sentido, mas este detalhe me leva a
acreditar que qualquer ser humano, por desesperado que seja seu mundo, ainda
tem a extraordinária possibilidade de escapar da realidade cotidiana e ter fé,
não importa qual tipo de fé. Entidade superior celestial ou abissal, bondade do
próximo, sorte grande no loto... Com este modesto anel, talvez razão de seu
sorriso, este pedaço de homem pode sonhar. Não está só.
Dimitri Ganzelevitch
Salvador, 2011.
Nenhum comentário:
Postar um comentário