Cela de manicômio onde Bispo do Rosário viveu e criou obras é reproduzida em exposição em SP
Mostra traz obras do artista sergipano e de nomes contemporâneos influenciados por ele
Por Mariana Rosário — São Paulo
As agruras emocionais do artista sergipano Arthur Bispo do Rosário (1909-1989) o levaram a uma vida de reclusão e cárcere. As internações tomaram mais da metade dos 80 anos que viveu. Da prisão em um manicômio, no Rio, teceu com linha, agulha e tecidos de uniformes um caminho que para ele figurava como sua missão de vida. De sua cela, conforme ordenavam as vozes, fruto de sua esquizofrenia, catalogava o mundo, imagens, itens corriqueiros, para exibi-las no “Juízo final”.
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É nesta coleção — na qual objetos como sapatos, pentes, roupas, bonecas e toda sorte de objetos que estão ao alcance das mãos em boa parte das residências em qualquer lugar do mundo — que o artista dá um verniz único do fragmento de realidade que viveu ao lado de outros asilados e profissionais de saúde. Cerca de 400 itens deste acervo — que ultrapassa a marca de mil obras — podem ser vistos na mostra “Bispo do Rosário — Eu vim: aparição, impregnação e impacto”, que o Itaú Cultural, em São Paulo, abre hoje às 20h.
A exposição, que vai até 2 de outubro e tem ingressos gratuitos, reúne em três pavimentos estandartes, faixas, painéis, esculturas e escritos criados por Bispo. Trata-se de uma atração que funciona bem, inclusive, para quem nunca ouviu falar sobre o artista sergipano radicado no Rio, acredita Juliano Ferreira, coordenador do Núcleo de Artes Visuais do Itaú Cultural. Além de retratos do artista, há tablets com áudios que dão explicações sobre as alas da mostra.
Em um dos andares, foi criado um ambiente que remete à cela onde o artista viveu, repleta de peças encarceradas num cubículo. Ao redor, outras “celas” exibem gravações de performances de outros criadores que partem da obra de Bispo para seus trabalhos. Entre eles, os contemporâneos Arlindo Oliveira da Silva, ex-colega de manicômio de Bispo do Rosário, e a fotógrafa Fernanda Magalhães. Ao fundo, vê-se uma parede de cobogós semelhante à que havia na Colônia Juliano Moreira, hospital psiquiátrico carioca que, por décadas, foi morada do artista.
— Nos propusemos a trazer a ambiência do lugar onde Bispo criou sua obra, que era sua própria cela. Daí a ideia desse cubo no meio do espaço expositivo, que recria a forma que Bispo expunha seu trabalho. Ele mesmo direcionava as pessoas que tinham interesse em ver suas obras por determinados caminhos dentro do espaço que ele ocupava, havia esse caráter de exposição — conta Ricardo Resende, um dos curadores.
Acervo desorganizado
Apesar do raciocínio “expositivo” de Bispo, suas obras impõem grande desafio a quem deseja exibi-las. Isso porque o artista não nomeou, nem datou, muito menos hierarquizou o volume colossal de peças nas quais trabalhou. Em sua cela havia, portanto, certo acúmulo de produções. Sabe-se, porém, que a ideia de organização dos itens — caso de uma placa em que há a justaposição de uma série de pentes de cabelo — assemelha-se às estruturas da loja de um vendedor ambulante ou de uma banca de jornal, referência usada repetidas vezes pelo artista.
Ponto de partida
Há nesta exposição o exercício de exibir Bispo do Rosário como um ponto de partida para uma seleção de outros artistas contemporâneos brasileiros. Neste sentido, a mostra abriga mais de uma centena de obras de outros criadores, a exemplo de Ivan Serpa (1923-1973), Leonilson (1957-1953) e Sonia Gomes.
Quem visita a exposição pode perceber a semelhança entre a produção desses artistas e a de Bispo, seja no suporte (uso, por exemplo, de tecidos), ou de cores análogas, ou assuntos que se sobrepõem — caso da deterioração da saúde mental, crucial para compreender a produção de Bispo, mas também discutida em retratos diversos exibidos nas galerias.
Uma das peças que fazem uma tradução mais literal dos humores do tempo atual é assinada pela carioca Rosana Palazyan, chamada “Aqui é mais do que vírus”, em que se vê um painel com uma série de minimáscaras de proteção, iguais às utilizadas para conter o avanço da Covid-19. Nos diminutos itens de proteção, há mensagens bordadas, com os fios de cabelo da artista, a exemplo de “proteger você de mim” e “respira-dor”.
— O que queremos trazer para o debate é o impacto da obra de Bispo na cena artística, na produção contemporânea. E, além disso, mostrar como sua obra produziu efeito na maneira em que se observa a arte, a história da arte. Queremos mostrar o “efeito Bispo” na cena artística brasileira — diz Diana Kolker, também curadora da exibição.
Ela dá um passo à frente na discussão que questiona se a obra de Bispo é, ou não, um tipo de produção que pode ser observada dentro do guarda-chuva do que se conhece por “arte”:
— Mais do que pensar se é arte ou não, estamos discutindo como a invenção dessa obra tem efeitos no campo da arte e também da saúde mental, que são os lugares onde ele reverbera. Não queremos enquadrar, mas romper com essas categorias.
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