Minha mão direita
Devo
ter uns dezenove anos. Cabelo farto, quem diria, magro, quem diria, atordoado
com o mundo que se desvenda á minha mente, ouvidos e olhos. Ávido por tudo
abraçar. Minha mãe e Antônio são muito amigos do casal Madeleine e Émile Vuillermoz,
respeitado crítico musical, autor da “Histoire de
Esta noite será muito especial.
Nos
anos 50, ir ao teatro ou ao concerto é uma cerimônia quase mística. Terno e
gravata quando não smoking, vestido longo ou, pelo menos, do maior requinte
possível. Cabeleireiro. Perfume. Jóias. Casaco de peles. Beija-mão. É a première de Canticum Sacrum, obra de
Igor Stravinsky. O próprio vai reger. Na mesma fila, três cadeiras a minha
esquerda, a deslumbrante atriz Laureen Bacall. Veio sem o Humphrey. Do
extraordinário olhar ainda lembro bem, isto sim. A sala está repleta. Todos conversam,
investigando quem está, alguns fazem sinais com a mão aos amigos mais
distantes. O teatro começa na sala. Sente-se uma excitação geral. Não é a
qualquer momento que o famoso compositor vem de Nova-Iorque para apresentar uma
criação nova.
Mais
uma vez, ele irá perturbar os melômanos com inquietações sonoras.
Quem
sou eu, mal saído da adolescência, para entender algo deste evento musical que
amanhã vai encher os jornais de discursos teóricos contra e a favor, todos
banhados em nervosismo e argumentos bélicos? Entendo vagamente que estou
participando de uma página importante para a história da cultura ocidental.
No
intervalo, vamos para o vasto salão onde o público exaltado desfila. O tom das
conversas nunca esteve tão alto. De repente, o próprio maestro chega, longo
pássaro preto de bico curvado, falando com uns e outros. Aproxima-se do nosso
pequeno grupo. Vuillermoz, que foi amigo de Ravel e Debussy, conhece Stravinsky
há mais de vinte anos. O maestro russo é esguio, não muito alto e, confessemos,
bastante feio.
Mas
estou defronte ao criador do revolucionário Pássaro
de fogo, encomendado por Diaghilev no
princípio do século XX, do
escandaloso Sacro da Primavera, que
quase terminou em batalha no teatro dos Champs-Élysées. O homem que descontruiu
a música, que transformou o piano em brutal instrumento de percussão,
pendurando Chopin no armário dos já-foi. O homem que mudara os rumos da música
como Picasso os da Arte ou Gropius da Arquitetura. Aquele que havia dito “Não
basta violentar Euterpe, é preciso faze-lhe um filho!”.
Distraído, ele aperta minha mão, no exato momento que Laureen Bacall chega para também cumprimentá-lo. Alguém poderia existir ao lado da dona destes olhos profundos?
Era
realmente jovem demais na época para entender da importância do encontro com o tornado
genial. Hoje, contemplo minha mão direita cheia de manchas, enrugada, veias
aparentes, uma cicatriz, resultado de queda. Ela apertou, geralmente por mero acaso,
a mão de alguns dos homens e mulheres mais importantes do século XX. Juscelino
Kubitschek, Umberto II da Itália, Yehudi Menuhin, Amália Rodrigues, Dorival
Caymmi, Carmen Amaya, Martha Graham, Igor Stravinsky, Margot Fonteyn, as últimas
sultanas otomanas e uns poucos outros que participaram da construção de uma
nova sociedade...
Algo
deles me foi deixado. Nada do gênio, claro, mas como um pedaço de luz, uma
faísca que me faz sentir diferente. De quê? Não sei... diferente, simplesmente.
Dimitri
Ganzelevitch 1de setembro de 2008.
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