Castigo *
Dizem que a sorte se merece. Se não a provocar, passará por perto sem você se dar conta. Esteve com frequência ao meu lado durante grande parte de minha vida, e, desde cedo, mandou vários sinais para eu começar a fantasiar sobre possível mudança para o Brasil.
Não teria mais de 20 anos
quando um casal americano, que se encantará com minha forma de lhes mostrar
tesouros secretos de Lisboa – sempre amei as cidades onde vivi - me convidou para
um jantar muito especial no restaurante do recém-inaugurado Hotel Embaixador. O
local não tinha nada que pudesse deslumbrar nem meus anfitriões, nem mesmo a
mim, já acostumado as sofisticações de Londres e Paris. Mas era novidade na
capital lusitana.
A sala, redonda, ficava no último andar do edifício, toda envidraçada, com uma pista de dança rodeada de mesas cobertas de toalhas brancas como todo e qualquer outro estabelecimento do gênero pelo país afora. Portugal, naquela época, não se singularizava por grandes esforços decorativos no campo hoteleiro. Estes se limitariam, no caso, a alguma palmeira ao lado da porta de serviço e um quadro abstrato sem assinatura. Luz de velas protegidas por cúpulas de vidro e, entre a entrada e os toaletes, um pequeno conjunto musical. Chegamos cedo, mesmo tendo reservado com antecedência, para usufruir de vista privilegiada sobre a atração da noite.
A orquestra iniciou os
primeiros acordes, dando o tom do que seria o espírito da noite. Músicas
lentas, com alta tensão dramática, era o costume no fim dos anos 50. Quanto
mais Judy Garland, Amália Rodrigues e Edith Piaf choravam de desespero, mais o
público se emocionava e aplaudia.
Ela, finalmente, entrou. Parecia beirar os 40, visivelmente inchada, encharcada de álcool, sem maquiagem a não ser o carregado preto à volta dos verdes olhos, juba farta denunciando o sangue índio. Vestido negro, longo e simples. A passos hesitantes foi se sentar no alto tamborete colocado de propósito à beira da pista e pegou o microfone. O público parou de conversar, fascinado pelo carisma da cantora. Menos uma senhora que, de costas para a estrela, continuava conversando em voz alta como se ninguém mais existisse na sala.
Maysa entrara fumando.
Esperou um ou dois minutos, tempo imenso para a expectativa geral. Orquestra
tocando e a portuguesa sempre a falar. Mais uma lenta tragada de fumo e, com
total domínio do gesto, a diva pegou o cigarro entre dois dedos e lançou, com
pontaria certeira, a beata no decote generoso das costas da faladora. Na semi-
escuridão do restaurante, todos viram a luz vermelha do cigarro atravessar a
pista, mergulhar no vestido e ouviram o grito da vítima que se levantou
apavorada.
Silencio absoluto. Silêncio
com qualidade de aprovação, além de todos admirarem o total domínio da
pontaria. A famosa voz grave e quebrada deixou cair um “Desculpe...” com a mais
total e fria indiferença.
Agora dona da situação, após
tão peculiar conquista, Maysa começou a cantar desenganos, abandonos e solidões
que ficariam eternizados sob a definição de dor de cotovelo. Naquela fria noite
lisboeta, uma estranha simbiose entrelaçou samba canção e fado. No salão de
brancas toalhas, homens sérios de escuro terno e mulheres altivas, inevitável vestidinho
preto e colar de pérolas. Não havia cor alguma além dos lábios vermelhos das
espectadoras. Tudo a parecer produção para um filme em preto e branco.
Com o devido distanciamento
dos anos – mais de meio-século - realizo hoje que participei de algo como um
ato histórico. Pois a cultura também pode ser história.
Maysa, olhos perdidos na
fumaça, cantava toda a tristeza do mundo com aquela “voz de whisky”, voz que
reencontrei, anos mais tarde, com Vinicius, desta vez sem tristeza.
E eu, tentando explicar ao casal americano algo que eu mesmo não podia entender...
Numa tarde chuvosa de 1976,
entrando no túnel Américo Simas a caminho da cidade baixa, no carro do Miguel,
que conhecera semanas antes e seria amigão e comparsa por três décadas, ouvimos
a noticia do acidente e morte da Maysa.
Um capítulo de minha vida
tinha encerrado.
Dimitri Ganzelevitch Salvador,
6 de outubro de 2009.
* Nome de uma canção de
Dolores Duran que a Maysa também interpretava.
Nenhum comentário:
Postar um comentário