A lembrança de um rosto pode segui-lo durante uma vida inteira.
Madri
ainda é uma cidade miserável. A guerra civil acabou, mas deixara marcas por
toda parte. Marcas de balas e afirmações franquistas elegantemente grafitadas
nas paredes. Arriba España, Primo de Rivera. España no hay más que uma, Viva
Franco. Marcas mais secretas, feridas sangrentas. Quitandas pobres e
poeirentas. Povo calçado de sapatilhas, algodão e sola de corda, na neve suja
derretendo. Pesado olor de fritura de azeite de oliva mal refinada. Metrô
fedorento e escuro...
Mas
aos dezessete anos, eu vou ligar para isso?
Pela
primeira vez uma companhia estrangeira de dança clássica, o London Festival
Ballet, esteve no palco do Teatro Madrid por uma semana e esta noite, a última,
fomos convidados para uma festa de confraternização no tal palco. Morenos
bailarinos andaluzes se misturam a graciosas e douradas dançarinas. É a
primeira vez que piso bastidores, que estou no meio de tantos artistas, alguns
deles famosos.
Mais
de meio século desapareceu...
Vejo-a
como se fosse ontem, no meio da multidão. Ela se destaca sem esforço.
Tem
luz especial.
Estatura
média, quadris e seios feitos para parir e alimentar filhos, envolta num
vestido negro “de lunares” brancos. Maxilar quadrado, cabelo como ondas
noturnas à volta de uma face plena, generosa, lunar, onde brilham dois planetas
profundos. Máscara perfeita. Quem é? pergunto a meus acompanhantes.
Uma
cantora portuguesa. Amália Rodrigues.
Portuguesa com certeza. Ouvi vagamente falar nela, em Lisboa, onde minha
mãe mora há quase um ano.
Este
rosto me fascinará pelo resto da vida. Desde a primeira olhada.
Nossos
caminhos por várias vezes se cruzarão. Não vou agora pretender sermos amigos
íntimos, mas os raros encontros são carinhosos e a conversa natural. Jantamos
juntos no Café des Artistes, reduto das estrelas do show biz em Paris, depois
do concerto no Olympia. Nos encontramos durante uma filmagem no Cabo da Roca,
vento ácido de salitre movimentando os moinhos. Sei mais de seus amores que ela
dos meus, pelo menos assim suponho. Seu rosto me hipnotiza, de longe nos
freqüentes palcos, de perto em eventuais casas amigas.
A
casa de Joaquim Mitninsky, decorador lisboeta, cuja belíssima casa na Rua da
Horta Seca, a dois passos do Chiado, é a imagem perfeita da ostentação,
beirando, sem porém, cair no excesso. O sofisticadíssimo judeu adora convidar
os colunáveis do momento. Eu, colunável? Nem tanto. Devo servir como
tapa-buraco, para não serem treze à mesa, ou faltando um homem para equilibrar
o ambiente...
Estou
a conversar com uma senhora brasonada de idade definida, dessas que não mais
pulam cercas. Obrigatório vestidinho preto, obrigatório colar de pérolas,
cabelos brancos laqueados, no dedo antigo anel de brilhantes, evidente jóia de
família.
Do
outro lado da sala, está Amália, à volta de quem o jantar foi organizado,
assediada, como sempre e em qualquer lugar. Escuta mais do que fala, xale
sedoso nos ombros, longos brincos filigranados de ouro, como das noivas da
Beira Alta.
De
que estamos falando? Nada de memorável. De repente, Amália olha na nossa
direção, se separa do grupo e vem nos cumprimentar. Sua atenção dirige-se à
velha condessa, encantada por ter sido notada.
“A
senhora se lembra de mim?” pergunta Amália.
“E
quem poderia esquecer Amália?” responde a anciã sorrindo.
-
Não, senhora. Estou falando de muitos anos atrás...
...
Interrogação silenciosa da interlocutora.
-
A senhora não se lembra, mas eu costumava tocar a sua porta... Sua casa ainda é
em Alcântara?...
-
Sempre!
-
Eu tocava a sua porta, quando tinha meus doze, treze anos, para lhe vender
laranjas...
A
velha condessa fixa Amália com seus olhos embaçados, sem poder articular uma só
palavra. Nem eu. A emoção se faz sólida, concreta. Amália sorri, acrescenta
umas palavras gentis e volta ao grupo inicial.
Já
conheci autenticas rainhas ao longo de minha vida.
Amália
foi uma delas.
Dimitri
Ganzelevitch Salvador 23 de dezembro de 2007.
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