Obras colocam futuro das praias em risco
Substituição da vegetação natural por pisos impermeáveis causa uma série de danos ambientais permanentes
Mais do que desperdiçar e dar destinação suspeita a recursos públicos, como mostrou reportagem de A TARDE, as "revitalizações" feitas pela prefeitura na orla de Salvador na última década – desde o início do primeiro mandato de ACM Neto, em 2013 – põem em risco o meio ambiente nas praias e áreas de lazer recém-criadas, alertam especialistas.
De acordo com eles, a substituição da vegetação natural existente entre a faixa de areia e o continente por pisos impermeáveis causa uma série de danos ambientais permanentes, capazes de alterar o desenho da orla e gerar transtornos a moradores e frequentadores da região. “A zona de praia é superimportante para fazer a transição entre o mar, ambiente com grande movimentação, e o continente, que praticamente não se movimenta”, observa o biólogo e professor do Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Miguel da Costa Accioly. “A praia é a região que absorve esse atrito, essa movimentação, de um lado, e estabiliza de outro. A praia precisa se movimentar, ela é uma faixa de areia que se movimenta. E a vegetação de restinga que cresce ali, entre a faixa de areia e o continente, é especializada em segurar essa areia e abrandar os efeitos de ressacas no mar”, explica Accioly.
Ele destaca que a retirada dessa vegetação para a realização de obras causa dois efeitos: alagamentos e invasão de areia sobre a cidade. “Com isso em mente, o que acontece quando você tira a vegetação da praia para cimentar? A ressaca do mar vai avançar sobre esse ambiente, destruindo obras e construções, e a areia, que está se movimentando na praia, vai subir por essa obra ou construção, que vai ficar sempre com areia”. De acordo com o biólogo, essas mudanças são rápidas e já podem ser sentidas pela população. “Já é comum você ver, ali em Piatã, o pessoal sempre precisando varrer e tirar areia, mas se tivesse uma faixa de restinga mantida entre a praia e a avenida, por exemplo, não haveria praticamente nenhuma areia, que seria quase toda retida pela vegetação”, afirma.
“Podemos ver esse problema da areia também na praia entre o Rio Jaguaribe e a Av. Pinto de Aguiar, onde foi construída uma intervenção dessas com quadra e arquibancada. É só passar lá e dar uma olhada para perceber que a areia já cobriu tudo. Basta comparar com imagens de antes das obras. Passaram-se poucos anos e tudo foi coberto de areia”. O professor destaca que, no caso das obras de Itapuã, o que tende a começar a acontecer é o avanço da areia para dentro das casas. “Do jeito como ficaram as obras, a areia deve começar a passar com velocidade por cima dos estacionamentos e invadir as casas, infernizando a vida do povo”, acredita.
“Por outro lado, na Praia dos Artistas, as quadras continuam boas, porque a duna está toda coberta de vegetação entre a praia e as quadras, e isso é fundamental. Se tirar essa vegetação, se fizerem uma intervenção em cima dessas dunas, essas quadras acabam, pois a areia irá andar e cobrir tudo.”
Nível do mar
Com a areia correndo na direção do continente, a tendência é que o mar também avance com velocidade, em especial nas áreas que mais sofrem com a maré alta, segundo o arquiteto e urbanista do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-BA), Carl von Hauenschild. “Desde o final dos anos 1990 a questão da elevação do nível do mar é relevante para intervenções costeiras em todo o mundo, e Salvador teve uma grande oportunidade de preparar melhor a orla para esta ameaça inevitável, mas não seguiu o que se faz no mundo”, afirma. “Foram feitas várias intervenções em áreas costeiras de Salvador, durante as gestões de ACM Neto, sem pensar como proteger as praias da erosão. Eles apenas maquiaram.”
“A preservação de vegetação na 'faixa de restinga’, para retardar a ‘fuga’ de areia da praia, é a alternativa mais econômica e ambientalmente adequada para intervenções do gênero”, ressalta o urbanista. “E temos bons exemplos que deveriam ser seguidos, como em Praia do Forte (no litoral norte do Estado), onde as ações para preservar a restinga e a vegetação rasteira de médio porte têm dado resultados fantásticos. Não é complicado nem caro. Na Europa, eles costumam fazer um tablado e cercas para evitar que as pessoas pisem na vegetação. É algo simples, mas que tem um efeito enorme e não custa quase nada”.
Para von Hauenschild, as obras em Salvador ajudam a acelerar o processo de avanço do mar sobre a cidade. “O ex-prefeito ACM Neto acha que fez um serviço grandioso para a sociedade, gradeando as praias e usando aqueles tratores pesados nas obras, que é o pior que se pode fazer, especialmente em áreas de maré alta”, destaca. “O uso desses tratores é péssimo, porque você está ajudando a baixar a areia lá de cima, empurrando para ser lavada pelo mar, acelerando ainda mais o que, naturalmente, já está acontecendo. Já estamos vendo os efeitos dessa retirada da vegetação rasteira em Stella Maris e Ipitanga, por exemplo, pois não há investimento nessa faixa de areia crítica onde o mar mais avança”, lamenta.
Interesses
Para a ambientalista Lavínia Adriana Soares Bomsucesso, integrante do conselho gestor da Área de Proteção Ambiental (APA) das Lagoas e Dunas do Abaeté e da Associação de Moradores de Piatã, as obras na orla de Salvador seguem interesses da construção civil: “A escolha dos entes públicos tem sido pela alteração completa das biorregiões, em seus ativos ecológicos de fauna, flora e da cultura também”. Para ela, "a alteração urbana segue interesses ligados à indústria da construção civil. Enquanto o concreto tiver mais poder do que quem vive no local, sofreremos consequências de um modelo que oprime, reduz e modifica nossa paisagem, nossa baianidade, nossa identidade e nossa natureza”.
Lavínia também critica a descaracterização das particularidades de cada trecho da orla, cada vez mais parecidos entre si.
“O problema é o padrão das obras: processos que chegam prontos, elaborados de cima para baixo, entre escritórios de engenharia e arquitetura e gabinetes de autoridades. Não se busca ouvir e compor com quem vive, convive e sobrevive no local. Nossas áreas são pensadas por quem não tem ligação com a localidade. As praias estão sendo tratadas como lugar comum, por conta dessa massificação que ignora as identidades e singularidades”.
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