Fareed Zakaria - Washington Post /
O Estado de S. Paulo - 03.06.2023
Acompanhando a eleição turca, fiquei impressionado ao escutar uma das mais graduadas autoridades do país, o ministro do Interior, Suleyman Soylu, discursando para a multidão de uma varanda. Exultante, ele prometeu que o presidente Recep Tayyip Erdogan “varrerá qualquer um que causar problemas” para a Turquia, “incluindo o Exército americano”.
Anteriormente, Soylu disse que indivíduos “perseguindo uma abordagem pró-EUA serão considerados traidores”. Tenha em mente que a Turquia é membro da Otan, com bases americanas, há 70 anos.
O próprio Erdogan usa com frequência e estridência a retórica anti-Ocidente. Uma semana antes do primeiro turno, ele tuitou que seu rival “não revelará o que prometeu para os terroristas matadores de bebês ou para os países ocidentais”.
Erdogan pode ser um dos representantes mais extremos dessa atitude, mas não está só. Conforme muitos comentaristas têm notado, a maior parte da população mundial não está alinhada com o Ocidente em sua luta contra a invasão da Ucrânia ordenada por Vladimir Putin. E a guerra em si apenas ressaltou um fenômeno mais amplo: os mais poderosos países em desenvolvimento estão cada vez mais anti-Ocidente e anti-EUA.
LULA. Quando o Brasil elegeu Luiz Inácio Lula da Silva, no ano passado, muitos suspiraram aliviados ao ver o populista Jair Bolsonaro ser substituído por uma figura conhecida e tradicional da esquerda. Em poucos meses no cargo, contudo, Lula escolheu criticar o Ocidente, vociferar contra a hegemonia do dólar e afirmar que Rússia e Ucrânia são igualmente culpadas pela guerra.
Esta semana, Lula recebeu o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, cujo reinado brutal expulsou milhões de habitantes de seu país. Lula rasgou elogios ao ditador e criticou Washington por negar a legitimidade de Maduro e impor sanções contra seu regime.
O presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, tinha reputação de ser moderado, pragmático e amigável aos negócios, com laços com o Ocidente. Mas, sob seu governo, a África do Sul pendeu mais para a órbita de Rússia e China. Seu governo não condenou a invasão russa, participa com as Marinhas de Rússia e China de exercícios navais e é acusado pelos EUA de fornecer armas para os russos – os sul-africanos negam.
E há a Índia, que deixou claro desde o início da guerra que não tem intenção de se opor à Rússia, que segue sua principal fornecedora de armamentos avançados. As declarações de Nova Délhi sobre seu desejo de manter um equilíbrio entre Ocidente e Rússia têm sido tão numerosas que Ashley Tellis, estudioso das relações EUA-Índia, escreveu um ensaio alertando Washington a não acreditar que a Índia ficaria do lado americano em qualquer crise com Pequim.
O que está acontecendo? Por que os EUA enfrentam tantos problemas com os países em desenvolvimento? Essas atitudes têm raiz em um fenômeno que eu descrevi em 2008 como “a ascensão do resto”.
Nas últimas duas décadas, houve uma enorme mudança no sistema internacional. Países populosos, mas pobres, saltaram das margens para a arena central. Antes representando uma fatia ínfima da economia global, os “mercados emergentes” agora constituem metade de seu total. Seria justo afirmar que eles emergiram.
Conforme se tornaram fortes economicamente, estáveis politicamente e orgulhosos de suas culturas, também se tornaram mais nacionalistas, e seu nacionalismo é definido em oposição a países que dominam o sistema internacional – leia-se o Ocidente. Muitas dessas nações foram colonizadas por países ocidentais e têm uma aversão instintiva a esforços ocidentais em vinculá-los a alguma aliança ou grupo.
Refletindo sobre esse fenômeno, a especialista em Rússia Fiona Hill nota que o outro fator nessa desconfiança é que esses países não acreditam em Washington quando ouvem os americanos defendendo um sistema internacional com base em regras.
Esses países consideram os EUA, segundo Hill, “arrogantes” e “hipócritas”. Washington aplica as regras sobre os outros, mas as quebra com intervenções militares e sanções unilaterais. Os americanos insistem que os outros se abram ao comércio, mas violam esses princípios quando bem entendem.
O novo mundo não é caracterizado pelo declínio dos EUA, mas pela ascensão dos demais países
MUDANÇA. Este é o novo mundo. Não caracterizado pelo declínio dos EUA, “mas pela ascensão dos demais”. Vastas regiões do planeta que figuravam antes apenas como peões no tabuleiro de xadrez passaram a ser jogadores importantes e pretendem escolher seus próprios movimentos, com frequência em função de seu interesse. Eles não serão facilmente intimidados ou seduzidos. Terão de ser persuadidos. Navegar nessa arena é o grande desafio da diplomacia americana. Washington está à altura da tarefa?
Fareed Zakaria -
É colunista do Washington Post
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