Cercadas pelo veneno,
comunidades rurais estão
desaparecendo junto
com a Amazônia
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Carolina Bataier – Brasil de Fato
Durante as tardes, um grupo de macacos aparece nos galhos mais altos das mangueiras
ao redor da casa onde vivem os agricultores José Aldenor da Silva Pedroso e Expedita
de Souza Lima, na comunidade rural de Chaves, em Mojuí dos Campos, região oeste
do Pará, a cerca de 30 quilômetros de Santarém (PA).
“Quase todo dia eles estão lá. Acostumaram com a gente”, conta o agricultor.
Ele acredita que os animais chegam até ali em busca de comida. “Ainda bem que
tem esse mato aqui que serve pra eles andar, caçar alguma fruta, né?”.
Vista do alto, a propriedade da família é uma ilha verde em meio ao deserto da
monocultura. Com 38 hectares, o lugar guarda três nascentes de igarapés, cercadas
pela mata preservada. Diante da casa, um estradão de terra delimita fronteiras.
De um lado, a agricultura familiar. Do outro, estende-se a perder de vista o terreno
arado, onde a soja é intercalada com o cultivo do milho, a depender da época do ano.
Ali, da floresta, restaram pequenos trechos.
“Na época que morava umas 70 famílias aqui, a gente vinha meio-dia, uma hora da tarde,
pegava um saco de produto, botava nas costas, vinha de lá para cá, por debaixo do
mato”, lembra Pedroso.
Com o avanço das lavouras de grãos na região do Planalto Santareno, entre os
municípios de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos, as áreas verdes foram perdendo
espaço. “Agora, dá meio-dia, você não aguenta, não. É perigoso, porque não tem uma
sombra, não tem nada”, lamenta o agricultor.
Os municípios ficam no entorno da BR 163, rodovia utilizada para o escoamento da
soja colhida no Mato Grosso, estado que lidera a produção nacional do grão.
Em Santarém, em 2003, a empresa Cargill instalou um porto de abastecimento
de navios cargueiros.
Dali, a soja segue pelo rio Tapajós até o Amazonas e, depois, para os países
compradores. A instalação do porto desencadeia a expansão da monocultura no
entorno na BR 163. Depois da Cargill, outras empresas do agronegócio instalaram
portos e obras de infraestrutura voltada para a exportação de grãos.
De acordo com o relatório A soja no corredor logístico norte, publicado pelo Instituto
de Estudos Socioeconômicos (Inesc), o problema pode ficar ainda mais grave com
a construção da Ferrogrão, ferrovia que irá conectar Sinop (MT) a ao distrito de
Miritituba, no município de Itaituba (PA). “Se construída, a estrada de ferro vai atravessar
uma região altamente sociobiodiversa, o que trará afetação a pelo menos 17 Unidades
de Conservação (UC) de diversas categorias, além de pelo menos seis Terras Indígenas
dos povos Kayapó e Panará”, alerta o estudo.
Sai floresta, saem comunidades inteiras, entra um deserto de soja. Em 2005, Mojuí dos Campos tinha 3 mil hectares destinados ao cultivo do grão. Em 2023, a área saltou para 51,4 mil hectares, segundo dados extraídos da plataforma Mapbiomas.
Entre os três municípios da região, Mojuí lidera a devastação. A taxa anual de desmatamento por lá saltou de 400 hectares, em 2013, para 6,1 mil, em 2021, representando aumento de 1.443%. Os dados são do Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (Prodes), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
A derrubada da floresta colocou Mojuí na lista dos 70 municípios que mais desmatam a Amazônia, atualizada em 2024 pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA). Essas localidades são responsáveis por quase 80% do desmatamento no bioma e, por isso, são monitoradas dentro do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm).
Ilhas de floresta e agricultura familiar
Na visita da reportagem do Brasil de Fato à região, em meados de novembro de 2024, a lavoura estava na fase final do vazio sanitário, período de três meses em que os cultivos são suspensos para conter o alastramento do fungo causador da Ferrugem Asiática, doença que pode causar perda de até 90% da safra.
Restavam os caules cortados do milharal. Sobre o chão ocre, as folhagens secas e uma ou outra espiga acentuavam o contraste entre a monocultura e as áreas de agricultura familiar.
Pedroso é um dos moradores da região que persiste na atividade. Com a ajuda do filho, José André Lima Pedroso e da esposa, ele planta açaí, banana, pimenta, macaxeira, coco e outros alimentos. “Tem de tudo um pouco”, diz. Sem planos nem desejo de abandonar a terra, a família lida com a pressão de viver cercada pela monocultura.
Na comunidade de Chaves, restaram três famílias. “Todo mundo foi embora, só ficou nós. Aqui tudo era cheio de casa, tinha casa aqui, bem ali, mais pra lá, do outro lado da ponte…”, enumera Expedita.
A saída dos moradores teve início no final dos anos 1990, quando os primeiros agricultores venderam suas terras para pecuaristas, antes da chegada das plantações. Em meados dos anos 2000, as pastagens passaram a ser ocupadas pela soja, aumentando a pressão para que os pequenos agricultores vendessem suas propriedades.
De acordo com Bruna Balbi, assessora jurídica da organização Terra de Direitos, que realiza pesquisas na região, um levantamento feito pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém identificou que 600 agricultores haviam vendido as terras para os sojeiros em 2002, na véspera do início da operação do porto da Cargill no município. A presença do porto serviu como incentivo para produtores de outras regiões, que migraram para o Planalto Santareno em busca de novas terras para o plantio de grãos.
“Essa intensa especulação imobiliária faz com que muitas famílias locais sejam pressionadas a vender as suas terras, seja pela assédio no valor das terras, seja por ameaças ou mesmo pelo uso intensivo de agrotóxicos nas propriedades vizinhas”, avalia Balbi.
Obrigados a sair
De acordo com Sileuza Barreto, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e Agricultores Familiares de Mojuí dos Campos, das cerca de 130 comunidades rurais do município, 19 desapareceram por completo. Outras, foram perdendo espaço para a soja e estão em processo de desaparecimento.
Ela explica que esse processo acontece em duas etapas. Primeiro, os sojicultores procuram os moradores e fazem oferta para a compra das terras. Alguns aceitam e vendem seus terrenos, que passam a ser usados para o cultivo de grãos. Quem fica na comunidade, passa a viver cercado de soja e, muitas vezes, não vê outra opção a não ser buscar outro lugar para viver.
“A gente tem relato de pessoas que foram obrigadas a sair porque não conseguia sobreviver por conta da questão tanto das pragas, dos insetos que vão pra suas propriedades, também como a questão do veneno”, afirma Barreto.
O agricultor aposentado Messias Tiburcio de Castro está entre os que venderam as terras. Ele saiu da comunidade de Chaves há cerca de sete anos, depois de viver mais de cinco décadas por lá.
“O sojeiro começou a comprar as terras dos meus vizinhos, né? Foi comprando, comprando e a gente já estava ficando quase isolado”, conta. Na propriedade onde criaram os seis filhos, Castro e a esposa, Maria Muniz, cultivavam mandioca, arroz, frutas e verduras. Hoje, o casal mora em uma chácara na comunidade Baixa da Onça.
No espaço de menos de um hectare, entre algumas árvores frutíferas, galinhas ciscam no terreiro. Do portão, é possível avistar as plantações de soja. Em certas épocas do ano, não é preciso olhar ao redor para sentir a presença da monocultura.
O casal lembra da última vez em que os sojicultores aplicam calcário, mineral usado para melhorar a qualidade da terra e prepará-la para o plantio. O vento levou o pó fino pelo ar, espalhando-o pelas propriedades ao redor da área da plantação. “A rede ficou cheia de calcário”, conta Muniz, apontado para a rede azul celeste amarrada entre duas árvores, perto da casa.
O calcário incomoda, mas o que preocupa mesmo é o agrotóxico. Na época da pulverização, feita com tratores, é possível sentir dali o cheio do veneno que, como diz Castro, “vem com o vento”.
Barreto acompanha de perto as consequências do avanço das plantações de grãos. Na comunidade onde vive, a Terra Preta dos Lúcios, um igarapé morreu, contaminado pelos agrotóxicos e afetado pelo desmatamento.
“Quando a gente chegou lá, esse igarapé era para tudo. Pra tomar banho, pra lavar, pescava”, lembra. Perto da nascente, os sojicultores derrubaram a mata ciliar. “Hoje, a nascente não existe mais (…) Foi tudo degradado”, lamenta.
‘Se correr o bicho pega se ficar o bicho come’
Nesse cenário de devastação, o que sobra de área verde passa a ser um refúgio para espécies diversas, como os macacos que visitam o quintal de Pedroso. Em outubro, um grupo de capivaras devorou as mudas de açaí plantadas pela família. “A coisa para nós agora ficou mais complicada porque nós temos que trabalhar pro nosso sustento e pro sustento dos animais”, diz o agricultor, em tom resignado.
Com a mudança na paisagem, insetos também avançam para as áreas preservadas e de agricultura familiar. “A gente batalha. Eu faço o máximo para não usar veneno”, ressalta Pedroso. No entanto, os agrotóxicos aplicados na soja empurram as pragas para a lavoura da família. “Aí, de vez em quando, a gente se obriga a usar, porque senão não colhe. Não tem saída”, lamenta.
Sem saber se foi contaminado pelo vento, pela água ou pelos alimentos, o agricultor agora se preocupa com a própria saúde. Um exame realizado em 2023 pelo Instituto Evandro Chagas atestou a presença de glifosato na urina de Pedroso. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), essa substância, utilizada como agrotóxicos contra plantas daninhas, é considerada como potencialmente cancerígeno para seres humanos. A esposa e o filho do agricultor também fizeram o exame e tiveram resultado negativo. “Já fiz exame de novo e tô esperando resultado. Não sei o que é que vai acontecer. Nós estamos assim. Se correr o bicho pega se ficar o bicho come”, lamenta.
Seguindo pelo estradão de terra que funciona como fronteira entre a propriedade da família e a plantação de soja, é possível ter alguma dimensão da devastação. Em meio ao deserto da monocultura, restava o tronco queimado de uma árvore grossa. Em alguns pontos, castanheiras resistem solitárias, lembrando que, embora o Planalto Santareno tenha algumas características de Cerrado, como trechos de árvores baixas e retorcidas, ali é Amazônia.
Em certo ponto da estrada, duas mangueiras imponentes fazem sombra nos túmulos do cemitério da comunidade Baixa do Cipó, única lembrança daquela parte do povoado. Onde havia casas, hoje há plantação de grãos.
“Tem algumas comunidades aí que a gente passa e quem não sabe que lá era a comunidade, quem não sabe da história, continua não sabendo, porque passa lá e vê só o deserto de soja”, lamenta Barreto.
Em Belterra, pulverização de agrotóxicos ao lado de escola suspende as aulas
Além das 19 comunidades que desapareceram na região, outras estão cada vez menores. É o caso de São Francisco da Volta Grande, no município de Belterra, onde os quintais de algumas casas fazem fronteira com a área de plantio de grãos.
“A comunidade está aos poucos desaparecendo, dando cada vez mais abertura a esses campos de soja”, observa a professora Giselida Nunes da Silva, que leciona na Escola de Ensino Fundamental Vitalina Motta desde 2017.
Em junho de 2024, os cerca de 300 alunos atendidos pela unidade de ensino precisaram ter as aulas suspensas devido à contaminação por agrotóxicos. “Nos dois últimos anos, 2023 e 2024, foi quando nós mais sentimos. O cheiro muito forte, alunos e professores passando mal”, conta Silva. Os professores gravaram vídeos da aplicação de agrotóxicos no horário das aulas.
Em janeiro de 2023, o Ministério Público do Pará (MPPA) instaurou um inquérito civil recomendando que a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), a Secretaria Municipal de Gestão do Meio Ambiente e Turismo de Belterra (Semat) e a Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará (Adepara) realizassem a fiscalização nas plantações do entorno da escola. O documento pedia que os órgãos avaliassem se a aplicação estava sendo realizada com o distanciamento mínimo exigido em legislação ambiental.
Entre os meses de janeiro e fevereiro de 2023, o Instituto de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) emitiu 38 notificações para o produtor de soja responsável pelos crimes ambientais no entorno da escola; aplicou uma multa de R$1 milhão ao produtor e proibiu o uso de agrotóxicos até que as determinações do órgão fossem cumpridas.
Em 2024, o agrotóxico foi aplicado durante a madrugada e, novamente, os alunos e professores passaram mal quando chegaram na escola. Com isso, as aulas foram suspensas por dois dias. “Fizemos alguns exames toxicológicos aqui na escola com relação ao possível envenenamento. Estão aguardando os resultados”, conta a professora Heloise Rocha, que trabalha há nove anos no local. O caso está em investigação pela Delegacia de Conflitos Agrários de Santarém.
“Não é só a escola que tá sendo envenenada, é a comunidade como um todo que tá sendo afetada com isso”, lamenta Silva.
*Esta reportagem foi produzida em parceria com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
Banido no Reino Unido: pesticida é causa de envenenamento em agricultores no Brasil
Apesar de ter proibido o uso em território nacional, Grã-Bretanha exporta agrotóxico diquat para outros países. Casos de intoxicação são relatados por trabalhadores do campo.
Em 2021, Valdemar Postanovicz, um agricultor de 45 anos do Paraná, no sul do Brasil, viveu uma experiência traumática após ser exposto ao pesticida Reglone, que contém o químico diquat.
“Todo o lado direito do meu corpo ficou paralisado. Não conseguia sentir meu pé nem minha mão. Minha boca se torceu para o lado direito”, descreve Postanovicz, que temia estar sofrendo um acidente vascular cerebral (AVC).
Na verdade, ele estava enfrentando os sintomas de uma intoxicação aguda por pesticidas.
Reino Unido: exportação legal, mas questionável
O Reglone e outros pesticidas à base de diquat foram proibidos no Reino Unido por seu alto risco à saúde e ao meio ambiente. Contudo, investigações conduzidas pela Greenpeace, por meio de sua unidade Unearthed, revelaram que o diquat e outros produtos tóxicos continuam sendo exportados legalmente para países em desenvolvimento, como o Brasil.
O Brasil é um dos maiores consumidores do diquat, substância conhecida por causar danos graves à saúde, incluindo cegueira, vômitos, convulsões e até morte. Embora o diquat tenha sido proibido na União Europeia desde 2019 e no Reino Unido desde 2020, ele ainda é amplamente utilizado em diversas partes do mundo, especialmente no Brasil, onde seu uso aumentou de 1.400 toneladas em 2019 para 24.000 toneladas em 2022.
A realidade das intoxicações no Brasil
A crescente utilização do diquat no Brasil tem levado ao aumento das intoxicações acidentais. Entre 2018 e 2021, o estado do Paraná, um dos maiores consumidores de diquat, registrou de um a três casos de envenenamento por ano. Esse número saltou para seis casos em 2022 e nove em 2023.
Marcelo de Souza Furtado, da Secretaria de Saúde do Paraná, alertou que o número real de intoxicações é muito maior, já que muitos casos não são notificados devido à falta de acesso à saúde em áreas remotas e ao medo de represálias por parte dos empregadores.
Furtado também destacou que, com a proibição do paraquat no Brasil em 2020, o uso de diquat aumentou consideravelmente. “Estamos preocupados. Se já foi banido em outros países, isso já mostra que tem um efeito muito tóxico”, afirmou.
Especialista critica a exportação de pesticidas banidos
Dr. Marcos Orellana, relator especial da ONU para toxinas e direitos humanos, condena a exportação de pesticidas banidos para países em desenvolvimento, acusando o Reino Unido de "exploração moderna". Orellana ressaltou que essa prática coloca em risco a saúde de trabalhadores rurais no Brasil e em outros países do Sul Global, em muitos casos, sem as devidas condições de segurança.
Em resposta, a Syngenta defende que seus produtos são seguros quando usados corretamente e que as exportações cumprem as regulamentações de cada país importador. A empresa também destaca que os pesticidas, como o diquat, são ferramentas essenciais para aumentar a produtividade agrícola e reduzir a emissão de carbono, por meio de práticas como o plantio direto.
No entanto, a Greenpeace e outros grupos de defesa dos direitos humanos questionam a ética dessa prática, classificando a exportação de produtos banidos como irresponsável. Doug Parr, cientista-chefe da Greenpeace, afirmou que "os pesticidas como o diquat destroem a terra e a biodiversidade para produzir produtos agrícolas destinados à exportação, sem considerar os danos sociais e ambientais".
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