Mulher escravizada por desembargador de SC não passa Natal com familiares há 42 anos
Surda,
Sônia Maria de Jesus foi libertada por fiscais do trabalho em Florianópolis no
ano passado
24/12/24
A véspera de Natal na casa dos
irmãos de Sônia Maria de Jesus, 50 anos, terá nesta terça-feira
(24) a mesma triste ausência das últimas quatro décadas. Há 42 anos, Sônia
Maria de Jesus não pode passar o Natal e nem o aniversário dela, no dia 28 de
dezembro, com seus familiares. Sônia é surda e foi libertada da residência do
desembargador Jorge Luiz de Borba em Santa Catarina, em junho de 2023, por
fiscais do trabalho que a encontraram escravizada na casa de
luxo do magistrado, em Florianópolis.
No entanto, após uma decisão
judicial autorizar um encontro dela com o casal, Sônia acabou voltando a viver
na casa do desembargador ainda no ano passado. Nos últimos meses, os irmãos de
Sônia pediram judicialmente e tentaram um acordo com a família Borba para que
ela pudesse passar o Natal com a família biológica em São Paulo. Os Borba,
porém, não autorizaram. Os advogados Collaço Gallotti Petry, que representam a
família Borba, disseram que não irão comentar sobre o caso e que “está em
segredo de justiça”.
“Hoje iremos nos reunir. Todos os
irmãos e sobrinhos para estarmos juntos porque é a data da nossa mãe e vamos
estar todos juntos como ela sempre gostou. Por isso, esse anseio de ter a Sônia
junto com a gente. Seria a realização do sonho da nossa mãe. Tudo isso é muito
doloroso “, revela Marta de Jesus, uma das irmãs de Sônia. “O Natal é uma data
muito simbólica para nós. A minha mãe, mesmo trabalhando como doméstica, o
dinheiro era para comprar a comida do mês e ela fazia questão de fazer um
macarrão, um frango, umas frutinhas e decorar a mesinha e sempre passamos todos
juntos. Minha mãe amava o Natal”, conta Marta.
A irmã também desabafa que, além
do pedido negado no Natal, a família Borba impediu que um encontro entre os
irmãos acontecesse em janeiro. “Tudo isso é informado para eles com
antecedência e eles ficam um tempo sem responder. Aí quando respondem, nossas
solicitações são negadas. Reagendamos uma visita no dia 18 de janeiro. Isso foi
encaminhado e respondido com um aceite. Posterior a isso, fomos informados que
eles iam viajar e iam ficar o mês inteiro viajando. Logo, a visita de janeiro
também foi cancelada”, desabafa Marta, que revela que conta com apoio da
organização Cáritas para esses encontros e as passagens já estavam compradas
quando o casal recusou a visita.
Histórico
Desde o ano passado, a família de
Sônia luta no Judiciário para retirá-la da casa do desembargador. Segundo uma
reportagem do Intercept com o portal Catarinas, Sônia vive com os Borba desde
os nove anos. A mãe a entregou temporariamente à psicóloga Maria Leonor
Gayotto, mãe de Ana Cristina Borba, mulher do desembargador, em 1982. Na
ocasião, existiria um problema de violência doméstica na família de Sônia. No
entanto, a família passou, depois, anos procurando por ela sem encontrá-la.
Ao longo dos anos, porém, Sônia
passou a ser escravizada na casa da família Borba. As investigações sobre o
caso mostraram que ela passou a trabalhar como doméstica na casa da família sem
receber nenhum salário ou mesmo ter direito a descanso. Além disso,
estava com problemas de saúde, como um tumor no útero, dormia em um quarto
mofado e não pode estudar ao longo de 40 anos.
Após a libertação feita pelos
fiscais do trabalho, Sônia foi levada a um abrigo. O caso foi amplamente
divulgado na imprensa e os irmãos tomaram conhecimento do paradeiro de Sônia e
passaram a buscar novamente contato com ela. Somente após o resgate, Sônia pode
passar a frequentar aulas de alfabetização na Associação de Surdos de SC.
No entanto, após o ministro Mauro
Campbell Marques, relator do caso no STJ (Superior Tribunal de Justiça)
autorizar uma visita do casal Borba à Sônia, ela acabou retornando para a casa
daquela família em 27 de agosto de 2023. Na decisão que permitiu a visita do
casal, o ministro argumentou que Sônia poderia voltar se manifestasse vontade
“expressa, clara e inequívoca”. Estudos do MPT (Ministério Público do Trabalho)
contestam a versão de que ela teria expressado o retorno sem ter sofrido
pressão.
Na época do resgate, Borba chegou
a emitir nota negando as acusações de que ela estava em situação análoga à
escravidão e dizendo que faria o procedimento para reconhecimento de paternidade
de Sônia, o que foi feito nos últimos meses. Um cálculo sobre as verbas
trabalhistas não pagas à Sônia chega a quase R$ 5 milhões.
Mais tarde, em 23 de outubro do
ano passado, a Procuradoria-Geral da República denunciou o desembargador e sua
mulher por trabalho análogo à escravidão contra Sônia e defendeu o afastamento
dela do casal. O STJ ainda não julgou o processo.
Desde o retorno para a casa dos
Borba, Sônia continua vivendo com a família e, segundo os irmãos biológicos, o
casal cria uma série de obstáculos para o contato com os familiares. Eles se
reuniram nos últimos meses seis vezes com ajuda da organização Cáritas. Os
irmãos de Sônia contam que os encontros, sempre em Florianópolis, são difíceis
já que envolvem muitas despesas para os familiares e ainda uma logística de
autorização dos Borba e acompanhamento.
“É um sentimento de muita
indignação. Impotência. A gente não tá pedindo nada de impossível e nada que
não seja direito. Então ficamos com a sensação de sempre ter que aceitar tudo
que é imposto por eles. Isso é horrível. Acho que tudo isso é um grande
desrespeito com a Sônia”, desabafa Marcelo de Jesus, outro irmão de Sônia.
Após a batida dos fiscais do
trabalho, os patrões pediram ao Judiciário o reconhecimento de paternidade da
Sônia e, se não for concedida, requerem a curatela por entender que a
trabalhadora não tem condições de responder por si mesma.
A família
biológica tem defendido no processo a autonomia de Sônia e afirma que desde que
ela começou a ser alfabetizada é possível notar uma evolução em seu
desenvolvimento e socialização. O processo ainda não foi concluído.
Nenhum comentário:
Postar um comentário