sexta-feira, 22 de setembro de 2017

LISBOA: AQUI PODIA MORAR GENTE

OCUPARAM UM PRÉDIO DA CÂMARA CONTRA A ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA EM LISBOA

O PRÉDIO CAMARÁRIO DO NÚMERO 69 DA RUA MARQUES DA SILVA, EM ARROIOS, FOI OCUPADO POR UM COLECTIVO, QUE QUER RETIRÁ-LO DAS "MALHAS DA ESPECULAÇÃO" E FAZER DELE "UM ESPAÇO DE USUFRUTO SOCIAL, SEJA HABITACIONAL, EDUCATIVO OU CULTURAL".


À janela do número 69 da Rua Marques da Silva, em Arroios, lê-se: “Não somos especuladores, somos espectaculares.” O aviso é uma espécie de bandeira branca de paz, de quem não quer fazer mal, apenas faz algo pela especulação imobiliária em Lisboa e pelo aumento das rendas.

O prédio na referida morada, propriedade da Câmara Municipal de Lisboa, foi ocupado na sexta-feira passada pela Assembleia de Ocupação de Lisboa (AOLX), “um grupo de pessoas, sem qualquer filiação institucional, unidas pela vontade de dar vida a um imóvel abandonado”, explicam numa espécie de comunicado publicado no blogue do movimento. A porta estaria apenas encostada, fizeram as limpezas necessárias e trocaram as fechaduras.
Querem tirar o edifício camarário das “malhas da especulação” e fazer dele “um espaço de usufruto social, seja habitacional, educativo ou cultural”. Só não sabem o quê em concreto, ainda. No último domingo, a Assembleia de Ocupação reuniu-se para colectivamente decidir o uso a dar ao imóvel – o convite foi feito a toda a comunidade, foram bem-vindas todas as pessoas que quisessem participar no processo.
Numa publicação na sua página de Facebook, afirmam que a reunião contou com a presença de “mais de 150 pessoas” e que “várias propostas foram feitas, algumas das quais serão já divulgadas em breve”. Já ao jornal O Corvo, o colectivo avança algumas ideias: a de instalar lá um “observatório para as questões da habitação”, um centro cultural para a realização de workshops com a população ou ainda um local onde bandas e artistas possam ensaiar. Quanto a dar-lhe um uso de habitação, Nuno Couto, um dos porta-vozes do grupo, diz que “foram ouvidas propostas nesse sentido” e que é uma possibilidade que, tal como as outras, terá de ser melhor discutida em próxima sessão da AOLX, a decorrer em momento ainda a definir.

RENDAS EM LISBOA NÃO PARAM DE AUMENTAR

“Nos últimos anos, o direito a habitar na cidade de Lisboa tem sido alvo de diversos ataques. Num cenário de crise económico-financeira e de austeridade, a alteração da lei das rendas por parte do anterior governo veio permitir novas oportunidades de negócio a fundos de investimento e demais entidades especuladoras, lê-se no blogue do AOLX. “Ao mesmo tempo, a imagem da cidade como um local solarengo, pitoresco e pacífico, promovida por indústrias turísticas, contribuiu para o aumento do número de pessoas interessadas em visitar e morar em Lisboa. O mercado está em alta e os preços também. O mercado está em alta e os preços também. Bairros onde as rendas eram outrora minimamente acessíveis viram os seus valores aumentarem de uma forma brutal. A recomposição destrutiva dos modos de vida na cidade, agora reservada a quem consegue pagar mais caro, é ilustrada pelos sucessivos casos de despejo.”
No início desta década, em plena crise, as rendas no concelho de Lisboa rondavam os 268 euros, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística (INE). O último estudo da consultora imobiliária CBRE dá conta de que agora o valor médio se fixa nos 830 euros – o Parque das Nações (1080 euros) e as Avenidas Novas (998 euros) são as zonas mais caras para arrendar. O INE prevê que as rendas voltem a aumentar em 2018 cerca de 1,12%, o que representa mais do dobro da subida deste ano e o maior dos últimos cinco anos.

PROGRAMA RENDA ACESSÍVEL É “MAIS SIMBÓLICO DO QUE MATERIAL”

Para tentar resolver a questão da habitação em Lisboa, a Câmara Municipal lançou este ano o Programa Renda Acessível, que prevê entre 5 e 7 mil casas de tipologias T0, T1 e T2 com rendas entre os 250 e os 450 euros, abaixo dos valores praticados pelo mercado. Serão em terrenos ou edifícios da Câmara, reabilitados por privados e concessionados aos mesmosatravés de concurso público. Os primeiros 126 mil fogos vão nascer na Rua de São Lázaro – no total, está previsto que o Programa Renda Acessível chegue a 15 locais diferentes da cidade.
No entanto, a AOLX entende que esta iniciativa camarária está “longe de constituir uma resposta efectiva ao problema”. “O seu objectivo é mais simbólico do que material, contribuindo para a legitimação de uma política habitacional marcada pela falta de iniciativa, pelo desbaratar de património e pela cumplicidade com fundos de investimento, inclusive na definição de supostas políticas sociais”, escreve o colectivo na mesma nota no seu blogue.

CÂMARA EM SILÊNCIO, POLÍCIA “DEPOIS DAS ELEIÇÕES”

A Assembleia de Ocupação mostra-se disposta a dialogar com a Câmara, que até agora se tem remetido ao silêncio relativamente a este caso. Na segunda-feira, o edifício agora ocupado terá recebido a visita por duas vezes da Polícia Municipal, que terá identificado quatro indivíduos e ameaçado avisar a PSP para “expulsar as pessoas da casa coercivamente depois das eleições”, segundo escreveram no Facebook.
“Há duas vias: ou a Câmara reconhece que, de facto, a casa estava devoluta e há uma alternativa que passa por um grupo de pessoas que querem ali fazer qualquer coisa de positivo ou, então, continua a ter um imóvel devoluto”, explica Nuno Couto ao jornal O Corvo, lembrando que o grande número de imóveis propriedade municipal sem uso definido contrasta com a enorme dificuldade em encontrar habitação condigna a preço razoável em Lisboa.
Esta sexta-feira há no Fórum Lisboa, na Avenida de Roma, um debate sobre habitação com os principais candidatos à Câmara e Assembleia Municipal de Lisboa, promovido pelo movimento Morar Em Lisboa. Está confirmada a presença dos cabeças de lista da CDU (João Ferreira), do BE (Ricardo Robles), do PAN (Inês Real), do PSD (Teresa Leal Coelho) e do CDS (Assunção Cristas). Por “incompatibilidade de agenda”, Fernando Medina do PS estará representado por Paula Marques.
Começou oficialmente a campanha para as autárquicas e Lisboa tem uma nova casa ocupada, na Rua Marques da Silva, dita "do Caracol da Penha", em pleno coração da Freguesia de Arroios. Quem deseja votar de forma informada tem tido não poucas oportunidades para ouvir os vários candidatos e candidatas esgrimir os seus argumentos, com a questão da habitação a ocupar invariavelmente o centro da discussão. É bem sabido que o valor das rendas, tal como o preço das casas, tem aumentado vertiginosamente nos últimos anos e não são poucos os lamentos pela impossibilidade de encontrar onde morar em Lisboa. As pessoas mais informadas saberão até que a Câmara Municipal é proprietária de uma enorme quantidade de imóveis, muitos dos quais estão vazios e votados ao abandono. Não houve aliás, desde que o século começou, candidato ou candidata que não tenha prometido dar conta do assunto, recuperando os fogos devolutos na posse do município e arrendando-os, a preços reduzidos, de forma a atrair "jovens", ou até "famílias jovens", para o centro da cidade.
Existe, porém, uma outra história a contar e quem tenha tido oportunidade, mesmo que por breves momentos, de entrar num desses edifícios devolutos e ver o que escondem as suas fachadas, está em boas condições para abordar o assunto. Fala-se, como se de um fenómeno meteorológico se tratasse, da multiplicação de prédios renovados por agências imobiliárias e dedicados ao alojamento de turistas, ou simplesmente adquiridos por não-residentes, na expectativa de uma valorização futura. Mas isso corresponde apenas a um momento específico do ciclo do imobiliário e, para compreender a natureza do problema, é necessário dar conta de tudo o que jaz a montante dele.
Quem tenha estado na Rua de São Lázaro, onde uma casa foi ocupada em 2010 e depois, novamente, em 2013, constatou um fenómeno aparentemente inexplicável: o edifício estava habitável do ponto de vista estrutural, ainda que os anos de abandono tenham nele provocado vários estragos. Um conjunto de reparações relativamente modestas teria sido suficiente para o devolver à vida, algo que ainda não aconteceu, quatro anos depois do seu desalojo. O mesmo se passava com outro edifício, ocupado em 2004, na Rua do Passadiço, em São José, convertido num condomínio fechado depois do seu desalojo. Em ambos os casos, escusado será dizê-lo, a polícia não perdeu a oportunidade de agredir e intimidar os ocupantes, de forma a desencorajá-los de voltar a travar a marcha do progresso.
E agora, na Rua Marques da Silva, tudo se repete. O edifício está em excelentes condições do ponto de vista estrutural, apesar de abandonado há já alguns anos, e a CML não apenas não o utiliza como mandou os seus funcionários cortar os fios eléctricos, de forma a garantir que mais ninguém o possa fazer. Eis o ângulo morto do problema da especulação imobiliária e da questão da habitação. Qualquer pessoa que passeie por Lisboa cruza-se amiúde com fachadas de edifícios devolutos, frequentemente emparedados, para que os transeuntes não se ponham a ter ideias (a 'solução', a todos os títulos brilhante, foi encomendada por Pedro Santana Lopes, outrora Presidente da Câmara e agora provedor da Santa Casa da Misericórdia, que é, nem por acaso, o outro grande proprietário de fogos devolutos na cidade). Esses prédios não estão, muitas das vezes, em condições tão degradadas que não possam tornar-se habitáveis com uma relativa economia de meios. E se fizermos a contabilidade dos anos que passaram desde o seu abandono, chegaremos provavelmente à conclusão que isso contribuiu muito mais para a sua degradação do que qualquer uso que lhes possa ser dado.
A narrativa segundo a qual o investimento imobiliário veio resolver o problema dos fogos devolutos em Lisboa surge assim a uma outra luz, quando levantamos o véu da propriedade privada e encaramos o problema num tempo longo. O investimento imobiliário não surge num deserto provocado por causas naturais. É o mecanismo elementar desse processo e a medida de todos os cálculos efectuados por quem governa a cidade, dentro e fora das instituições eleitas para esse efeito. Lisboa está há anos a ser sujeita a uma terraplanagem subtil, planeada rua a rua e casa a casa, com recurso a instrumentos tão básicos como a remoção de telhas e janelas, o emparedamento de pisos térreos, a danificação propositada da canalização e do sistema eléctrico, a repressão sistemática de qualquer veleidade de ocupação e a garantia de que não há alternativa. Quando fenómenos como a gentrificação ou a turistificação começam a ganhar forma, há já muito tempo que o território em questão assumiu um caráter hostil, moldado pelas forças invisíveis que irão lucrar com isso.
Ao ocupar um edifício que está num momento inicial desse processo, torna-se possível, pelo contrário, ensaiar as estratégias que permitam voltar a habitar a cidade.

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