terça-feira, 21 de novembro de 2017

DIA DO NEGRO É TODO DIA

‘Consciência é toda hora. Dia do negro é todo dia’, diz a professora que emocionou a Flip


Diva Guimarães, em Paraty, onde emocionou os presentes à Flip: alunos cotistas vão acabar com a desigualdade, diz ela
Foto: Ana Branco / Agência O Globo


RIO — A voz falhou, e a professora Diva Guimarães, de 77 anos, teve que respirar fundo algumas vezes para conseguir iniciar a fala emocionada que tocou o público da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho deste ano. "Sou neta de escravos. Aparentemente, a gente teve uma libertação, mas que não existe até hoje", disse. As palmas serviram de pano de fundo para o discurso de uma mulher negra em meio a uma plateia majoritariamente branca. Naquele momento, as lágrimas eram também do ator Lázaro Ramos, a quem ela pediu a palavra no painel "A pele que habito", do qual ele participava ao lado da jornalista Joana Gorjão Henriques. Não era pouco o que ela tinha para dizer. Nem pouca gente que quis ouvi-la. Um vídeo do episódio tem 16 milhões de visualizações na internet.
Naquele dia, Diva trouxe uma história de batalhas pessoais que se assemelha à de milhões no Brasil. Exaltou ali — e o permanece fazendo incansavelmente — o valor da Consciência Negra, celebrada hoje, dia da morte do líder quilombola Zumbi, um símbolo da resistência à escravidão, no final do século XVII. Seu testemunho tratou dos absurdos cometidos pelo racismo no Brasil com um notável senso crítico. "Sobrevivi e sobrevivo até hoje, como brasileira, porque tive uma mãe que fez de tudo para que eu estudasse", contou.



— Mas se serviu para alguma coisa (o episódio na Flip), por que não dividir? Eu falei da alma, né? Acho que foi isso que mexeu com as pessoas. — diz a aposentada, que reflete sobre aquela semana em que os holofotes de Paraty se voltaram para ela. — Foi inesperado até para mim. Não levantei para falar nada daquilo. Sou muito tímida. Só queria agradecer ao Lázaro por estar nos representando ali como negro. E à Joana pela coragem de seu livro de denúncia ("Racismo em português").
Leitora voraz desde menina, ela não queria "morrer sem ir à Flip". Segundo Diva, declamar sua história no evento significou uma libertação. Apesar de sempre ter acreditado que essa ação tivesse de vir de outras pessoas, deu-se conta ali de que poderia vir dela mesma:
— Nunca tinha valorizado as minhas conquistas. A gente foi tão acostumado a ouvir que, por ser negra, é inferior, incapaz. Ali não precisei me esconder.

O episódio ecoou em outros ambientes, e Diva celebra os muitos jovens que passaram a procurá-la. Jovens que dizem que não vão desistir de batalhar após ouvirem seu relato de resistência:
— São alunos cotistas nas universidades (que a procuram), que sofrem uma pressão enorme. Eles é que vão mudar essa desigualdade.
Segundo dados do IBGE, 55% da população brasileira se autodeclara preta ou parda. Apesar de maioria, ainda estão em desvantagem em termos de renda e escolaridade. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) trimestral registra que trabalhadores pretos e pardos recebem pouco mais da metade do rendimento médio dos brancos no Brasil. Quando se fala em educação, a realidade também é desigual. Entre a população com 25 anos ou mais, segundo dados da Pnad de 2015, 7,4% dos brasileiros brancos não têm instrução. O número sobe para 14,4% entre pretos ou pardos — índice 3% mais alto que a média nacional.

Diante desse cenário, Diva — como milhões de brasileiros — teve que lutar. Nascida em Serra Morena, interior do Paraná, ela é a penúltima de sete irmãos criados pela mãe lavadeira e parteira — que não cobrava por isso, já que acreditava ser essa a sua missão. No ginásio, era a única menina negra do colégio de Cornélio Procópio, no Paraná. Deparava-se com o racismo diariamente: ouvia agressões como "aqui não é o seu lugar", "lugar de negro é na cozinha ou na senzala".
— Em um desfile da Independência, uma aluna faltou e me colocaram para desfilar em seu lugar. Desci uma avenida inteira com duas meninas me xingando. Fui até o fim, mas terminei chorando — conta ela, que mora hoje em Curitiba.

A luta materna pela educação

A figura da mãe é algo central na vida da aposentada. Se não fosse por ela, Diva não teria estudado e se tornado professora de Educação Física, tendo lecionado por 30 anos na rede estadual do Paraná. Quando dizia que não queria ir á escola, ouvia: "Olha bem para a mãe. É isso que quer para sua vida? Se for, não vai".
— Como eu era bem rebelde, respondia: "Igual à senhora nunca eu vou ser". Pegava meu material e saía correndo. Não me perdi no caminho, apesar de muitas limitações. A leitura faz você descobrir que tem capacidade. Como professora, tornou-se uma missão não deixar que meus alunos se sentissem incapazes — afirma ela, que foi também alfabetizadora, além de atleta de basquete e de atletismo, quando jovem.
Depois de se aposentar, cursou ainda a graduação de fisioterapia:

— Não vou desistir de batalhar. Tem uma frase que diz: "O racismo mata, a educação salva".
Oficializado por uma lei de 2011, o Dia Nacional da Consciência Negra é um convite à reflexão sobre a representatividade negra na sociedade brasileira. Para Diva, a data até pode dar visibilidade ao tema, mas é pouco:
— Consciência é toda hora. Dia do negro é todo dia — ressalta.
Para ela, é preciso que os brancos também se comprometam a lutar contra o racismo e as desigualdades. Neste ponto, sua opinião é a mesma de Joana Gorjão Henriques, jornalista portuguesa branca autora do livro "Racismo em português — O lado esquecido do colonialismo" (Tinta da China), que participava da mesa na Flip. De Lisboa, Joana acompanha os desdobramentos da intervenção de Diva no evento.

— Em uma Flip majoritariamente branca, uma mulher negra se levantar e contar essa história da discriminação racial, que também faz parte da História do país, tem um grande significado — diz Joana. — Avançou-se bem pouco diante do tempo em que supostamente muitas desigualdades deveriam ter sido corrigidas. Ainda falta uma conscientização da população branca, que não se resume a "apenas" não ser racista, mas de ser antirracista.
Ela elenca a educação como uma das áreas em que mais se refletem as desigualdades históricas:
— As sociedades precisam de políticas públicas que contrariem as práticas discriminatórias, como as cotas raciais nas universidades. Mas ainda não é o bastante. Deveriam existir também cotas em empresas, na política. Se vemos que a população branca continua a ocupar os espaços de poder, temos que nos perguntar o porquê disso.


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