terça-feira, 16 de outubro de 2018

LEMBRANDO ANTÔNIO GADÉS


Carmen

Almoço na casa da baronesa Van Aerssen, calle Espartinas, centro de Madri, a dos passos da elegante calle Goya. Neste endereço prestigioso vou residir por um ano. Ano que marcará o resto de minha vida.

Resultado de imagem para FOTOS DE ANTONIO GADES CARMENTenho 17 anos, estudo no liceu francês e descubro o mundo. A baronesa é na verdade uma boa e brava sevilhana que, bonita, casara com um holandês barão e cônsul honorário na Andaluzia dos anos 30. Em modesto imóvel, o apartamento é bastante confortável, embora simples.  
Os filhos, Glória e Alberto, estão mergulhados em arte e dança flamenca. Com freqüência senta a nossa mesa todo tipo de artistas. Pintores, restauradores, cantores, músicos. E todos os ciganos e ciganas de todas as companhias de dança clássica espanhola da capital e arredores.
Como a guerra civil acabou há poucos anos, economia muita. A comida é espartana, mas as conversas vão contribuir a formar a cultura deste adolescente desajeitado que abre mais os olhos e os ouvidos que a boca.
No meio do aguado “cosido”, a bailarina se levanta da cadeira, queixo altivo e cabeleira farta severamente presa, toma pose e, erguendo o braço, declara “É assim que se coloca o cotovelo! ”. Na hora da cevada – café é luxo impensável – surgem as castanholas. Glória e outra cigana se enrolam em uma sevillana nervosa, ritmada de ruidosas palmadas. Isto é em pleno meio de semana.
.... Durante mais de meio-século fui espectador entusiasta de flamenco e balé clássico espanhol. Vi evoluir nos tablados e palcos do mundo ou nas cuevas de Granada, Carmen Amaya, Antônio y Rosário, Pilar Lopez, La Faraona, Antônio Gadés e muitos outros cujos nomes agora me escapam. Sem me considerar grande conhecedor, aceito ser etiquetado de amador familiarizado.

Tudo este preâmbulo para falar da montagem de “Carmen”, pela companhia Antônio Gadés, momento mais alto da temporada 2007 no TCA em matéria de dança. Sem efeitos especiais, Dolby sound ou luz negra. Dança pura.
“Carmen” segue a tradicional teatralidade do balé romântico que se desenrola a partir de uma narrativa, tal como o conhecemos desde o século XIX, tipo Lago dos Cisnes ou Gisela. Existe cronologia, trama e até gestual mimética evidenciando o amor, o ódio, a rivalidade, o desespero, a arrogância, o ciúme.
Entram agora os componentes do flamenco. Cantado, é impossível não lembrar a cultura árabe, a chamada do muezzin nas noites de Fez ou de Amman. Dançado, o corpo se cinde em duas partes, que se completam, mas também sabem se opor. As pernas marcam o ritmo com seu “taconeado” e parecem falar, murmurar ou provocar, enquanto os braços concretizam a espiritualidade do bailarino, com todas suas angústias e seus desejos.
No caso especifico desta montagem, verdadeira obra-prima do gênero, a quadrilogia Bizet-Gadés-Carlos e Antônio Saura surpreende por um rigor beirando o Nô japonês e também pela contemporaneidade na inovadora leitura feminista de Carmen e o cromatismo a la Caravaggio escolhido pelo consagrado artista plástico Antonio Saura, irmão do cineasta. Enfim as ousadias sonoras que misturam á obra de Bizet, Garcia Lorca, Regina Resnik, Mario del Mônaco e canto hondo.
Particularmente impressionante é a recuperação da ária “Toreador, prends garde á toi” de difícil adequação, pelo seu tom de arcaico triunfalismo. A solução encontrada foi uma parodia goyesca e bem humorada de tourada, momento de leveza e deboche antes do sombrio drama final.
Não faltou, como em todo balé clássico, o virtuosismo dos pas-de-deux e pas-de-quatre, um corpo de balé impecável e solistas soberbos. Mas o que tem de absolutamente único nesta expressão balética é o fato de ela evoluir sem jamais perder nem sua essência, nem seu vocabulário, sua espontaneidade ou vigor. Não sei de outra cultura ocidental que tenha mantido sua tradição coreográfica, de origem popular e, enobrecendo-a, evitado as armadilhas do folclore “para inglês ver”.
O escritor Prosper Mérimée e o compositor Georges Bizet, ambos franceses e cartesianos, devem estar encantados, sentados lá nas suas nuvenzinhas, assistindo a perenidade de sua obra agora totalmente assimilada pelo espírito intempestivo e passional dos vizinhos hispânicos.
 Milagre da Arte...

Dimitri Ganzelevitch                                                                          Salvador, 8 de Novembro de 2007.


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