Carmen
Almoço na casa da baronesa
Van Aerssen, calle Espartinas, centro de Madri, a dos passos da elegante calle
Goya. Neste endereço prestigioso vou residir por um ano. Ano que marcará o
resto de minha vida.
Tenho 17 anos, estudo no
liceu francês e descubro o mundo. A baronesa é na verdade uma boa e brava sevilhana
que, bonita, casara com um holandês barão e cônsul honorário na Andaluzia dos
anos 30. Em modesto imóvel, o apartamento é bastante confortável, embora simples.
Os filhos, Glória e Alberto,
estão mergulhados em arte e dança flamenca. Com freqüência senta a nossa mesa
todo tipo de artistas. Pintores, restauradores, cantores, músicos. E todos os
ciganos e ciganas de todas as companhias de dança clássica espanhola da capital
e arredores.
Como a guerra civil acabou há
poucos anos, economia muita. A comida é espartana, mas as conversas vão
contribuir a formar a cultura deste adolescente desajeitado que abre mais os
olhos e os ouvidos que a boca.
No meio do aguado “cosido”, a
bailarina se levanta da cadeira, queixo altivo e cabeleira farta severamente
presa, toma pose e, erguendo o braço, declara “É assim que se coloca o cotovelo!
”. Na hora da cevada – café é luxo impensável – surgem as castanholas. Glória e
outra cigana se enrolam em uma sevillana nervosa, ritmada de ruidosas palmadas.
Isto é em pleno meio de semana.
.... Durante mais de
meio-século fui espectador entusiasta de flamenco e balé clássico espanhol. Vi
evoluir nos tablados e palcos do mundo ou nas cuevas de Granada, Carmen Amaya,
Antônio y Rosário, Pilar Lopez, La
Faraona , Antônio Gadés e muitos outros cujos nomes agora me
escapam. Sem me considerar grande conhecedor, aceito ser etiquetado de amador familiarizado.
Tudo este preâmbulo para
falar da montagem de “Carmen”, pela companhia Antônio Gadés, momento mais alto
da temporada 2007 no TCA em matéria de dança. Sem efeitos especiais, Dolby
sound ou luz negra. Dança pura.
“Carmen” segue a tradicional
teatralidade do balé romântico que se desenrola a partir de uma narrativa, tal
como o conhecemos desde o século XIX, tipo Lago dos Cisnes ou Gisela. Existe
cronologia, trama e até gestual mimética evidenciando o amor, o ódio, a
rivalidade, o desespero, a arrogância, o ciúme.
Entram agora os componentes
do flamenco. Cantado, é impossível não lembrar a cultura árabe, a chamada do
muezzin nas noites de Fez ou de Amman. Dançado, o corpo se cinde em duas partes,
que se completam, mas também sabem se opor. As pernas marcam o ritmo com seu
“taconeado” e parecem falar, murmurar ou provocar, enquanto os braços
concretizam a espiritualidade do bailarino, com todas suas angústias e seus
desejos.
No caso especifico desta
montagem, verdadeira obra-prima do gênero, a quadrilogia Bizet-Gadés-Carlos e
Antônio Saura surpreende por um rigor beirando o Nô japonês e também pela
contemporaneidade na inovadora leitura feminista de Carmen e o cromatismo a la Caravaggio escolhido
pelo consagrado artista plástico Antonio Saura, irmão do cineasta. Enfim as
ousadias sonoras que misturam á obra de Bizet, Garcia Lorca, Regina Resnik, Mario
del Mônaco e canto hondo.
Particularmente impressionante
é a recuperação da ária “Toreador, prends garde á toi” de difícil adequação,
pelo seu tom de arcaico triunfalismo. A solução encontrada foi uma parodia
goyesca e bem humorada de tourada, momento de leveza e deboche antes do sombrio
drama final.
Não faltou, como em todo balé
clássico, o virtuosismo dos pas-de-deux e pas-de-quatre, um corpo de balé
impecável e solistas soberbos. Mas o que tem de absolutamente único nesta
expressão balética é o fato de ela evoluir sem jamais perder nem sua essência,
nem seu vocabulário, sua espontaneidade ou vigor. Não sei de outra cultura
ocidental que tenha mantido sua tradição coreográfica, de origem popular e,
enobrecendo-a, evitado as armadilhas do folclore “para inglês ver”.
O escritor Prosper Mérimée e
o compositor Georges Bizet, ambos franceses e cartesianos, devem estar
encantados, sentados lá nas suas nuvenzinhas, assistindo a perenidade de sua
obra agora totalmente assimilada pelo espírito intempestivo e passional dos
vizinhos hispânicos.
Milagre da Arte...
Dimitri Ganzelevitch Salvador, 8 de Novembro de 2007.
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