O caso do suicídio do pai de Luciano Hang, “seu Lula”, transformado em “infarto” pela Havan. Por Renan Antunes
POR RENAN ANTUNES DE OLIVEIRA, de Brusque (SC)
Na tarde do domingo, 27 de junho de 2010, o empresário Luciano Hang recebeu um daqueles golpes capazes de tirar qualquer pessoa do eixo – saiu na varanda de sua confortável mansão no centro de Brusque e encontrou o pai, morto, enforcado, pendurado num caibro, com a língua de fora e os olhos arregalados.
De acordo com vários relatos, Luciano baixou sozinho o cadáver do pai da forca. Em seguida, deu início a um teatro para ocultar o suicídio do homem que o ensinou a viver.
Por telefone, chamou o primo Nilton, a funerária Zuchi, o gerente de marketing da Havan, empresa que se tornaria uma das maiores redes varejistas do Brasil, e o médico Rafael Saádi, único legista da cidade, nesta ordem.
Uma farsa foi então tentada para transformar o suicídio em morte natural.
Por alguma razão que só Luciano pode entender, ele queria embelezar a memória do pai, Luiz, apelidado “seu” Lula, morto aos 79 anos, então uma das figuras mais populares da cidade por suas excentricidades.
Primeira providência: o pessoal do marketing distribuiu um comunicado à imprensa lacrando a mentira de que o velho Lula morrera infartado.
Quando a notícia chegou às redações, um editor da rádio Cidade despachou os repórteres AD para o Instituto Médico Legal (IML) e PS pra delegacia.
AD encontrou seu Lula numa mesa metálica, com a língua horrivelmente para fora: “Dava para ver a marca da corda no pescoço”, lembra AD.
Anoitecia.
Os repórteres que, numa cidade então pequena, sempre tinham acesso à delegacia, desta vez tiveram que ficar do lado de fora – Luciano Hang estava lá dentro, respirando todo oxigênio de Santa Catarina.
É fácil entender o cuidado dos policiais em fechar as portas – ele ainda não era o Véio da Havan, mas já era um dos homens mais ricos da cidade e conhecido por seus chiliques.
Na rádio, os jornalistas lutavam contra a verdade: “Se ele disse que seu pai morreu infartado, não vi motivos para escrever outra coisa”, conta um ex-diretor.
Ele disse que a primeira versão que chegou à redação fora que Lula tinha sido assassinado: “Checamos, então preferimos contar a mentira oficial do infarte”.
Enquanto isso, na delegacia, o delegado de plantão lutava com sua consciência para recusar uma polpuda propina para produzir um atestado de óbito frio – ele passou a oferta para o médico-legista, Rafael Saádi.
O doutor Saádi, hoje um proctologista estabelecido num belo consultório no centro, também não aceitou “preencher um cheque com quantos zeros quisesse”, oferecido por Luciano para que a causa da morte fosse alterada.
O médico se recusou, alegando que se algum dia a morte fosse questionada ele seria o responsável. Bateu pé, não aceitaria “dinheiro nenhum para mentir”.
E escreveu no atestado de óbito a verdade: “insuficiência respiratória aguda, asfixia mecânica (constrição mecânica por laçada), enforcamento”.
Pelo relato de um participante da reunião, Luciano Hang não derrubou uma lágrima sequer. Primeiro, ofereceu o dinheiro. Depois, tentou levar as autoridades no grito.
Enfim, saiu da delegacia espalhando a fake news do infarte, mas com um atestado verdadeiro. Em seguida, ordenou ao agente funerário a cremação imediata do corpo, levado na mesma noite ao Crematório Vaticano, em Balneário Camboriú, a 30 km.
Ninguém fora da família – nem o gerente de marketing – participou da cerimônia final. Seu Lula virou cinzas na manhã da segunda-feira.
Luciano voltou ao trabalho na tarde do mesmo dia, como se tivesse tirado a manhã de folga. Nenhum dos citados neste trecho lembra de ter visto o vaso com as cinzas.
Seu Lula deixou a esposa, dona Regina, dois filhos, João e seu irmão Luciano, e bens a inventariar – entre eles, uma cota pequena do império que estava sendo erguido.
O suicídio de seu Lula estava anunciado. Ele vinha dando sinais de demência senil.
É claro que nem sempre seu Lula foi assim. Ele era o herói do filho adolescente, tanto que aos 17 anos Luciano seguiu seu exemplo e foi trabalhar nas indústrias Renaux, a mesma onde o pai fez carreira de tecelão, da juventude à aposentadoria.
A ética de trabalho do pai era exemplar, com 40 anos na mesma empresa. O valor do emprego para o homem comum foi passado para o filho.
Em suas propagandas, Luciano sempre cita a geração de empregos da Havan. Ele promete que basta conseguir uma vaga na firma para o cidadão comum ingressar num “vidão”.
Poucos notaram, mas a morte do pai teve um profundo impacto em Luciano. De certa forma, Lula podava o crescimento do filho.
O pai perguntava “o porquê de tanta ambição, para que crescer mais?”, conforme contou enfermeira do postão do SUS.
Amigos próximos contam que Luciano passou por uma depressão logo depois da morte do pai. Perdeu peso até a forma que tem hoje, no personagem de Véio da Havan.
Luciano lutou sozinho contra a doença, até emergir do fundo do poço mais poderoso: meses depois da morte do pai ergueu uma megaloja e o Centro de Distribuição da Havan na BR101, dando início ao arrojado programa de expansão para chegar a 200 lojas em 2022.
Com “seu” Lula morto, Luciano cresceu até ser um bilionário da revista Forbes.
De uma certa forma parece uma profecia feita pelo pai, relatada pela mesma enfermeira do SUS que o atendia: “Não sei o que deu no meu filho, parece que acima dele nem Deus, só guarda-chuvas”.
Procurado para esta reportagem, Luciano Hang não quis falar com o DCM.
Como Luciano Hang comprou a empresa da qual foi demitido, sepultando o RH.
Por Renan Antunes
O bilionário empresário Luciano “Véio da Havan” Hang não quis falar com o DCM para esta série que tenta mostrar aos brasileiros como ele saiu do zero e tenta chegar ao infinito.
Ele está quase lá. Tem uma fortuna estimada pela revista Forbes em 2,2 bilhões de dólares (9,5 bilhões de reais ao dólar de 4.30). Já é o brasuca em 21º lugar na lista dos magnatas.
Ele veio do zero absoluto: o Véio é apenas a segunda geração de uma família de imigrantes alemães.
Seu avô foi empregado das Indústrias Renaux (a primeira têxtil de SC) e “deixou para a família uma casinha de madeira com tanto cupim que eu não podia botar as mãos na parede”, escreveu Luciano em suas memórias, ainda inéditas.
A família viveu meio século abaixo do zero: vovô Reynaldo chegou ao fim da vida sem dinheiro para um par de calçados – não é como hoje, em que os patrões são bondosos.
Era comum que o empresariado da época descuidasse do proletariado. Quando Reynaldo fez 60 anos de casado ainda andava descalço, dava pena na família.
O filho dele, Luiz, cujo trágico suicídio contamos no domingo passado aqui no DCM, começou cedo a trabalhar na mesma indústria do pai. Ficou lá por 40 anos, sempre como tecelão, até se aposentar. Quando se matou, aos 79, era sócio do filho Luciano, nosso Véio, na primeira Havan, mas pelo menos morreu calçado.
Luciano tinha apenas 17 quando foi sua vez de seguir a carreira do pai e do avô. Também entrou na Renaux.
O cônsul da Alemanha no Brasil à época, Carlos Renaux, era o dono do negócio. Karl Marx estava vivo quando Carlos deixou a Alemanha deles. A fábrica começou a funcionar, em 1892. Aqui, Carlos se uniu ao empresariado catarinense e nunca mais foi vencido, construindo um clã formidável – você já teve uma geladeira Consul (sem acento)? Era dele.
Vovô Reynaldo foi um dos primeiros proletários do cônsul. Ajudou os Renaux a fazerem uma fortuna incalculável, quase um século acumulando grana.
Em 1980, o franzino Luciano entrou no setor de expedição da poderosa Renaux – que mal se imaginava, estava quase à beira da falência.
Por três anos ele se comportou bem, até obter uma vaga no setor de vendas – virtude que ele tem: se o cliente vacilar, Luciano Hang é capaz de vender até a estátua da Liberdade.
Aos 21 o jovem da Havan fez um sócio chamado Vanderlei e os dois abriram a primeira loja da rede, usando as iniciais de ambos, Hang e Van-derlei. A lojinha tinha apenas 45 metros quadrados – hoje caberiam 666 delas na matriz de Brusque, com seus 30 mil.
Por algum motivo nunca revelado pelos sócios, Vanderlei se foi, mas deixou o nome para ser usado por Luciano – mais uma vez, fofoqueiros preocupados com a vida dele dizem que o silêncio eterno do ex-sócio foi comprado. Deve ter sido um preço bom, Van nunca abriu a boca.
Boca grande quem tinha era o Luciano. Amigos que frequentavam com ele o bar Kako, perto da Câmara de Vereadores, e o Schumaker, no distrito Guabiroba, falam da juventude do Véio: “Ele vivia cantando vantagem, mas todo mundo sabia que ele não tinha onde cair morto”, conta uma amiga das noitadas.
O mote dele aos 21, quando abriu a primeira lojinha: “Eu quero ficar rico, muito rico”. Bem, até aí, quem não gostaria?
Luciano seguiu com sua lojinha, com o pai ajudando no balcão, até fazer 24 – quando foi demitido da Renaux por justa causa.
Como a cidade era pequena naquele tempo, logo começaram as fofocas. O fato é que ele jamais foi denunciado nem processado pela Renaux.
Quando a empresa quebrou, no final dos anos 90, o Véio da Havan comprou todo espólio: o magnífico parque industrial e a documentação do RH – sepultando os boatos sobre a demissão.
MV, colega de escola e participante das noitadas, hoje morando em Floripa, conta que ele falava como um socialista expropriando o patrão: “Na expedição, fez amizade com o pessoal da seguradora. Toda noite, a Renaux enviava 10 carretas cheias de mercadorias para seu centro de distribuição nacional, em São Paulo”.
“Tudo com seguro, por causa dos constantes assaltos nas estradas brasileiras. Subornando motoristas e agentes de seguros, ele ficava com os produtos de uma ou duas carretas por mês – aí, vendia tudo mais barato do que a concorrência. A empresa não via problemas, porque recebia indenização, até descobrir que era ele e demitir”.
Numa entrevista a Roberto Cabrini no Conexão Repórter ano passado, já com 56 anos e montando no personagem do Véio da Havan, ele respondeu se fizera alguma coisa ilegal nos negócios, no início da carreira.
A resposta foi o mais próximo que ele já chegou de uma confissão: “Se você me disser que sempre fez tudo sempre certo, você é um mentiroso”, disse o Véio.
O modelo Luciano de crescimento era achatar os salários, terceirizar ao máximo possível, rodar o pessoal insatisfeito, não pagar impostos, não recolher INSS, subornar agentes federais do fisco no porto de Itajaí e do seguro social – tudo documentado em 38 processos na Justiça Federal e em incontáveis litígios com fornecedores e concorrentes.
Ele também recorria à imaginação para resolver pendências. Vamos dar aqui um salto para os anos 2 000, com a Renaux já falida. Luciano mostrou o quanto odiava os patrões do pai e do avô.
Por aqueles dias, um dos herdeiros da Renaux pediu um empréstimo de 5 milhões para Luciano. Sua Havan tinha quase 80 lojas e faturava horrores, cinquinho não era nada.
Ele emprestou, com uma taxa de juros que nenhuma das duas partes quis contar.
E aí veio o problema. O dinheiro não foi pago na data combinada. Luciano então ordenou aos frotistas da Havan que fizessem um cerco à casa do empresário “Xixo” Renaux – homem do tipo que fazia negócios no fio do bigode.
“Foi um escândalo na cidade, ele não precisava ter feito aquilo”, diz a cunhada de Xixo.
O cerco durou semanas. Aí começou a circular na cidade que uma das herdeiras dos Renaux seria sequestrada – Xixo pagou a dívida e a paz voltou a reinar em Brusque.
O dia que o trabalhador entender de fato a que classe pertence todas as mazelas contra ele terminam. O que não faz bem ao trabalhador e que o explora de todas as formas é o sistema capitalista. Fim.
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