Foto: Inácio Teixeira
Malu Fontes
Não é sobre Igor Kannário e a Polícia Militar. É sobre é aquele público e o que é aquilo, aquele bloco humano, que faz parecer que a terra está tremendo. Não se trata de escolher de qual lado ficar na fila do embate, se das provocações do cantor/deputado contra os policiais, se da nota de repúdio da Polícia Militar divulgada antes mesmo do fim do percurso do trio. Sobre isso, não vai faltar textão, jornalismo, imagens e a história do Carnaval. É o que se espera.
Aqui, é sobre a multidão que o segue e o aplaude. Salvador tem uma dimensão de pobreza e exclusão da qual muita gente não quer nem tomar conhecimento. Vê-la, então... A Polícia conhece esse mundo? Sim, mais do que todo mundo que fala de polícia e de favela, quase sempre sem nunca ter conversado com um policial na vida, sem nunca ter pisado numa favela ou se interessado em ouvir um favelado. Kannário conhece? Nunca perguntei, mas deduzo que sim, pois não foi criado em playground e é na periferia que está o seu público, que o idolatra. E para falar da pipoca de Kannário, a primeira coisa a ser escrita ou falada é a palavra favela, ao invés de comunidade. Quem está lá, pulando, sorrindo, ou brigando, ou batendo, ou apanhando, diz favela e canta que é favelado.
Já ouvi muita gente dizer que o poder público não deveria sequer ‘deixar’ o trio de Kannário sair, financiar então... Mas a questão parece ser outra: como vocês vão fazer para fingir que as pessoas com o perfil daquelas que estão ali dentro não existem antes e depois do Carnaval?
Alguém acredita que, se não sair com Kannário, aquele público vai ficar em casa, quietinho? Ou que vai sair comportadíssimo, num bloco peace and love? Salvador É, também, e numa proporção gigantesca, aquelas pessoas. O público do ‘Príncipe do Gueto” é só uma pequena amostra das pessoas que comem, quando comem, o pão que o diabo amassou nas periferias. Ou alguém vai ter coragem de dizer ou de escrever a frase reprimida? “Ah, mas ali todo mundo é ladrão”. Não tenho autoridade alguma ou ficha policial de ninguém para dizer que ali todo mundo é honesto e cidadão de bem, mas podemos bagunçar a pergunta:
Onde, no Carnaval ou fora dele, estão concentradas exclusivamente pessoas honestas e de bem? A cidade tem de tudo e, obviamente, o Carnaval também tem. Os ladrões, de todos os segmentos, estão em todos os lugares. Inclusive ou principalmente no Carnaval e não precisam de bloco ou de pipoca específica para agir. Sim, as facções também estão nas ruas e há quem diga que já demarcam ruas, paredes, trechos do circuito, lados da avenida, para se enfrentar. Mas aí a história é outra e é nacional. Pela TV e, principalmente, a olho nu, nas ruas, o que se vê é a periferia ocupando os espaços que não lhe eram permitidos no Carnaval. Quem ficava antes espremido nos becos, ou nem vinha pra rua, agora é protagonista. Nesse aspecto, o trio de Kannário é só mais um.
Esses ídolos que saem da periferia arrastando de lá seus moradores junto, ganhando fama, dinheiro, prestígio ou mandato, são autorizados por grande parte desse público a dizer o que dizem, a fazer o que fazem. E, às pessoas que dizem baixinho que têm medo daquilo, o que dizer? É bom domar o medo, desconstruí-lo ou pedir ajuda a tudo o quanto foi, é e for instrumento de criação dessa pobreza que assusta. Sim, a periferia assusta muita gente, mas ninguém lembra de lembrar que ela própria sempre viveu e continua a viver assustada. O susto é livre. E o medo, é bom saber, é democrático e é sentido tanto dentro quanto fora, lá e cá, e todos os vice-versas. Para quem tem medo da periferia na rua, duas coisas. Periferia e ladrão não são, nunca foram, palavras sinônimas. E para quem acha que a periferia vai sair do centro da festa, mire-se no movimento LGBT e todas as letras e sinais que ele carrega: quem sai do armário não volta para dentro dele nem que a terra fique plana. Quem saiu da periferia para o centro da festa, veio para ficar.
Sobre o comportamento da Polícia da Bahia nas ruas ou na favela, o Carnaval deste ano vai render muitas abordagens. A decisão de mudar de estratégia na festa, a pedido dos blocos, trios e artistas, segundo informações publicizadas pela própria corporação, gerou muita controvérsia. Houve recuo, mudanças ao longo dos dias e circulação de um texto apócrifo falando em Carnaval foda e Carnaval [do] foda-se.
Quanto a Kannario e a PM, o esticamento da corda vai para além da festa. O cantor não economizou em falas contra os policiais ao longo do trajeto de segunda-feira. A Polícia anunciou oficialmente que vai levar as ofensas à Justiça. Na mesma velocidade, o cantor divulgou uma nota-réplica dizendo que não irá se calar. E a festa continua, com direito a tudo: bebida, suor, prazer e dor. Afinal, é só mais um Carnaval normal no Brasil.
Malu Fontes é jornalista e professora de jornalismo da Facom/UFBA
(texto originalmente publicado no Instagram da autora - @maluzes).
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