Quando
li este artigo de Dimitri Ganzelevitch, publicado no seu blog e no jornal A
Tarde, senti-me na obrigação de acrescentar algumas linhas à sua justa
homenagem à família Liberato. É que sua história, por incrível que pareça, é
muito próxima da minha, pelo menos no que tange a alguns lances de
solidariedade, embora ocorridos em épocas e circunstâncias diferentes. Fiquei
mesmo impressionado com certas coincidências, que só depõem a favor desses
queridos amigos, demonstrando que os acontecimentos narrados por Dimitri não
são meramente circunstanciais. Antes de tudo registram uma marca de caráter,
pois Chico e Alba são as duas pessoas mais solidárias e amigas que já conheci.
Em
meados da década de 1960 eu estava no Rio, recém-chegado do exilio imposto pelo
golpe de 1964. Então revolucionário profissional, fodido, clandestino, sem
dinheiro, fugindo daqui para ali, muitas vezes dependia da ajuda dos amigos
legais para sobreviver, alguns orbitando em torno das organizações ligadas à
resistência à ditadura, outros mais à distância, mas nem por isso menos
conscientes do grave momento que atravessávamos. Chico tinha se casado havia
pouco tempo com Alba e foram morar numa rua tranquila de Santa Teresa. Formava,
com Antônio Dias (também morador de Santa Tereza), Rubens Gerchman e outros
artistas, a nova tendência das artes plásticas no Brasil. Creio que foi lá
pelos idos de 1966 que eles me acolheram, pois eu estava sem ter onde cair
morto e não podia ir para casa de parentes, muito visadas pela polícia. Alba
estava grávida de Ingra, uma gravidez difícil, pois enjoava muito e eu fazia o
que podia para dar-lhe apoio. Peguei Ingra recém-nascida nos braços. Fiquei lá
um tempão, e apesar dos apertos financeiros do casal, nunca me faltou uma boa
sopa, quando a grana da alimentação escasseava. Talvez eles nem saibam que, na
sua ausência eventual, algumas vezes promovi reuniões com os companheiros de
organização nessa casa. Enfim, recebi teto, comida e apoio logístico na
atividade política.
Tempos
depois o casal foi para São Paulo, para uma daquelas cidades do ABC, salvo
engano Santo André. Eu, por meu turno, solto de uma prisão às vésperas do AI-5,
tive que sair fugido do Rio e fui parar também em São Paulo. Lá voltamos a nos
ver; de vez em quando eu ia filar o almoço na casa deles. Lembro que nessa
época Chico sobrevivia como lexicólogo, descrevendo palavras para o dicionário
de uma editora paulista. Nesse trabalho, tinha como parceiro o saudoso cineasta
Tuna Espinheira, também embrenhado naquela cidade. Na luta pela sobrevivência,
valia tudo.
Finda a
temporada paulista, escondi-me por uns tempos em Itapetinga, na Bahia − tinha
sido condenado pela Auditoria Militar da Aeronáutica no Rio – e depois resolvi
me mudar para Salvador. Isto foi no final de 1971, a época mais dura da
ditadura. Aqui chegando, mais uma vez, foram Chico e Alba que me acolheram, num
apartamento em que moravam em Nazaré, na ladeira que ia dar na parte baixa da
Fonte Nova. Fiquei lá até poder alugar um apartamento para mim, junto com um
velho amigo.
Desde
então, nunca mais nos separamos. Apesar de ter ido morar na região da Costa do
Descobrimento, onde passei um bom pedaço de vida, sempre que vinha a Salvador
ia visitá-los. Acompanhei a sua trajetória à frente do MAM, com grandes
realizações, e no ano 2000 promovi uma exposição de suas obras com Ângelo
Roberto e Jair Gabriel em Porto Seguro numa galeria de arte que eu possuía na
Cidade Histórica.
De
certo modo, acompanhei o nascimento de todos os filhos de Chico e Alba, e
asseguro que o destino deles não tinha como fugir da arte. Chico e Alba não são
apenas artistas plásticos. Alba é poeta e escreve projetos artísticos e
roteiros para cinema para ninguém botar defeito. Chico é também cineasta, tendo
se dedicado particularmente à animação. Nessa esfera, a música desempenha um
papel fundamental. Então se pode dizer que naquela casa da Estrada Velha do
Aeroporto que construíram como seu paraíso pessoal, sempre se respirou arte:
pintura, cinema, artes plásticas, música e literatura. Por isso é que pude
contar com a presença de Chico e Alba nos lançamentos de quase todos os meus
livros.
Fico muito feliz com o sucesso dos filhos da família nas
carreiras artísticas que escolheram. Sobretudo porque sei o que foi atravessar
essa vida: das dificuldades, da luta pela sobrevivência, do pouco
reconhecimento, do esforço contínuo pelo crescimento intelectual, das
perseguições e das decepções. Tudo mantendo a cabeça erguida e sem perder em
nenhum momento esse traço fundamental da natureza humana que é a solidariedade.
Como Dimitri, sinto uma enorme ternura por esta querida e grande família.
Lisboa, 27 de fevereiro de 2020
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