quarta-feira, 3 de novembro de 2021

UMA FESTA! (SIC)

 


Sou preconceituoso, sim senhor. E daí? Por acaso você não é? Jura!

Todos nos somos. Não no atacado, claro. Aí somos política e ideologicamente certinhos. Nem tanto a esquerda e muito menos a direita. No meio, com olhares canhotos. Mas no varejo o negócio é outro. 

Foi no carnaval de 1987 que assumi sem remorso meu preconceituismo (sic).

Sabendo que estava para chegar a Salvador um amigo belga com título sonoro, o tal casal convidou-nos a uma festa pré, deixando entender que seriamos “os de honra”. Exatas sete noites antes da folia oficial, teríamos que ir, vestidos a fantasia, á determinado endereço para rir e dançar e beber e cantar todos os cânticos dos carnavais passados até Morais Moreira.

Cânticos, sim. Carnaval não é uma religião, neste país onde tudo é o Mais da América Latina e Adjacências? Não se reza de braços e pulmões abertos para o céu, extasiados?... 

O convite era para “umas dez horas da noite”. Francamente. Não é assim que se convida gringos ainda desajeitados. Por favor!

Ou é 22:15, ou é 23:50. Isto, sim, é convite claro. Agora “umas dez horas da noite” e ainda por cima para jantar?!... Só dá constrangimento, porque quando a gente toca o timbre, a patroa ainda está descansando e o fazendeiro fazendo a barba.

“Sentem aqui só um momento já venho tome um uísquizinho esteja à vontade a casa é sua desculpe qualquer coisa” e por ali vai.

Teremos todo o tempo de examinar a trágica decoração do apart. O endereço já era para se ter mais cautela. Afinal, de quem mora naquele bairro, no primeiro andar, esquina de duas ruas barulhentas, acima do pleigraunde (sic) com piscina-banheira, tudo se pode esperar.

No console junto à entrada, um lindo arranjo de flores artificiais sublinha a beleza do espelho purpurinado. A peça principal do salãozinho é uma autêntica tapeçaria gobelin paraguaia. “Embarque para Citera” de Watteau numa interpretação industrializada e reduzida. Um mimo. Como não tem assento na sala a não ser umas frágeis cadeiras de palhinha, somos acuados no escritório do nobre anfitrião. Um sofá para três pessoas muito magras nos acolhe. Vagamente desconfiados – ainda bem -  com a exigência de fantasia, vestimos camisas fartamente coloridas por cima de bermudas brancas e um idiota colar de flores de plástico. 

Perto da meia-noite. Chegam os primeiros convidados. Gritinhos de rigor e beijos mil.

Afinal, é festa ou não é?

A folia começa com fita gravada de marchinhas com todos os decibéis indispensáveis a alegria do bairro inteiro. Conversar? Nem pensar, mesmo aos gritos. De comidinha, nada, nem para tirar o sabor do uísque, aquela coisa abominável com gosto a sabão.

Passamos para a segunda fase. Na mão uma lata de cerveja, dança-se com sorriso dentudo cidademaravilhosa (sic). Estamos literalmente ao pé da parede, frente a uma estante com pelo menos dez livros de capa idêntica e bem arrumadinhos, uns diplomas de concurso bovino e fotos de casamentos. E mais flores artificiais.

Há lá evidente choque cultural e, nesta batalha desigual, perdemos feio.

De repente entra uma aloirada odalisca, perdão uma faraoa, braços hieroglíficos (sic) e umbigo a mostra. O umbigo será para nos o momento mor da festa. A balzaquiana já deve ter tido um corpinho ipanema, mas hoje as carnes pedem sombra e descanso. A dança do ventre coloca ao nível de nosso nariz um umbigo desafiando qualquer desvio.

Umbigo metaformósico (sic), virando olho, virando boca, virando galáxia. Parece perguntar: “Resistireis por quantos séculos?”. Resistimos, suando, até exaustão da suada Cleópatra. 

Pontualmente ás duas horas da manhã, o fim da angústia chega com o jantar, obsessivo objeto de nosso desejo. Nada comemos antes de vir. Nunca nenhuma refeição nos pareceu tão sublime. Nem Lucas-Carton, nem Fasano, nem Four Seasons. Aqui e agora matamos dois coelhos de uma vez ao trazer enfim merecida paz a nossos estômagos revoltados e pudermos adquirir a chave da liberdade. Ás 2:25 da manhã estamos a descer correndo a escada granitizada (sic) do espigão, jurando que nunca mais.

Sou preconceituoso, sim senhor. Festas “metidas” você me pegará, jamais. Prefiro mil vezes aniversário de costureira ou feijoada de taxista.

E não é demagogia, não senhor. É amor a honestidade.

 

              Dimitri Ganzelevitch   

Salvador, 17 de dezembro de 2007.

 

 

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