sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

NATAIS JUDEUS


A Quinta São Mateus é uma casa nobre como muitas que se construíram nos arredores de Lisboa, logo após o terremoto de 1755. O estilo pombalino, com seus elegantes azulejos e seus telhados achinesados, abriu caminho a uma forma de vida mais humana e sofisticada.

Lá vive, há várias gerações, uma família franco-portuguesa com um pé nos Açores, outro em Paris. Os Oulman fazem parte da aristocracia judia europeia. Aliados aos Rotschild e aos Calmann-Levy, daquela instituição histórica que, desde o século XIX até hoje, edita os maiores escritores franceses. Zola, Victor Hugo e Balzac e tantos outros.

Nicole, dona da casa, é uma Calmann-Levy. Baixinha e redondinha, traços finos de boneca de porcelana, gosta de receber. Um dos filhos, o Alain, é o compositor que levará Amália a mudar os rumos do fado.

Esta noite é especial, todos os familiares e amigos mais íntimos estão presentes. Uma imensa árvore de Natal enfeita a sala de jantar. Na longa mesa, a baixela mais fina brilha sobre linho bordado. Brilham também as pratas, os cristais, o jacarandá dos antigos móveis, os espelhos. Debaixo da árvore, cem presentes esperam seus destinatários. Serão distribuídos depois da ceia.

Esta respeita todas as tradições natalinas, desde o bacalhau até o peru; foie-gras e champagne incluídos. Sei que são extremamente abertos e generosos. Mesmo assim, judeus, e o esplendor desta encenação natalina não deixa de me perturbar.

Permito-me fazer uma pergunta neste sentido a Nicole. Responde-me com tranquilo sorriso: “É que Natal é uma festa tão bonita! ”.

Não há como não concordar. Festa familiar, amical, intima, ao redor da lareira onde canta a lenha a queimar.

Os anos passam. Na casa de José Pio e Nancy, em Araras, perto de Petrópolis onde fui passar memorável fim de semana, abro “The Orientalist”, biografia de Lev Nussimbaum. Judeu de Baku convertido ao Islã, sob o pseudônimo de Essad Bey, autor de sucesso na nascente Alemanha nazista. Minha atenção de repente é atraída por uma foto da infância daquele garoto destinado a uma vida ímpar. Ao pé de uma alta e suntuosamente enfeitada árvore, um grupo de cinquenta crianças posa para o fotógrafo. Natal de 1913. A legenda desvenda como uma resposta ao Natal lisboeta de 1957. Estas crianças, tão sossegadas na espera do passarinho, são judias, muçulmanas e cristãs. Todas unidas neste Natal que é uma festa tão bonita.

Abandono o pesado livro. Divago sobre outros possíveis caminhos na História deste mundo, sempre tão maltratada pelas ambições humanas. Quantas oportunidades perdidas, quantas vidas sacrificadas por resultados tão pífios...

Hoje, as árvores de Natal não mais unem povos de diferentes credos. Os caminhos deixaram de convergir. Não há como voltar ao Natal de 1913.

Nenhum comentário:

Postar um comentário