A Quinta São Mateus é uma casa nobre como muitas que se construíram nos arredores de Lisboa, logo após o terremoto de 1755. O estilo pombalino, com seus elegantes azulejos e seus telhados achinesados, abriu caminho a uma forma de vida mais humana e sofisticada.
Lá vive, há várias gerações,
uma família franco-portuguesa com um pé nos Açores, outro em Paris. Os Oulman
fazem parte da aristocracia judia europeia. Aliados aos Rotschild e aos
Calmann-Levy, daquela instituição histórica que, desde o século XIX até hoje,
edita os maiores escritores franceses. Zola, Victor Hugo e Balzac e tantos
outros.
Nicole, dona da casa, é uma
Calmann-Levy. Baixinha e redondinha, traços finos de boneca de porcelana, gosta
de receber. Um dos filhos, o Alain, é o compositor que levará Amália a mudar os
rumos do fado.
Esta noite é especial, todos
os familiares e amigos mais íntimos estão presentes. Uma imensa árvore de Natal
enfeita a sala de jantar. Na longa mesa, a baixela mais fina brilha sobre linho
bordado. Brilham também as pratas, os cristais, o jacarandá dos antigos móveis,
os espelhos. Debaixo da árvore, cem presentes esperam seus destinatários. Serão
distribuídos depois da ceia.
Esta respeita todas as
tradições natalinas, desde o bacalhau até o peru; foie-gras e champagne
incluídos. Sei que são extremamente abertos e generosos. Mesmo assim, judeus, e
o esplendor desta encenação natalina não deixa de me perturbar.
Permito-me fazer uma pergunta
neste sentido a Nicole. Responde-me com tranquilo sorriso: “É que Natal é uma
festa tão bonita! ”.
Não há como não concordar.
Festa familiar, amical, intima, ao redor da lareira onde canta a lenha a
queimar.
Os anos passam. Na casa de
José Pio e Nancy, em Araras, perto de Petrópolis onde fui passar memorável fim
de semana, abro “The Orientalist”, biografia de Lev Nussimbaum. Judeu de Baku convertido
ao Islã, sob o pseudônimo de Essad Bey, autor de sucesso na nascente Alemanha
nazista. Minha atenção de repente é atraída por uma foto da infância daquele
garoto destinado a uma vida ímpar. Ao pé de uma alta e suntuosamente enfeitada
árvore, um grupo de cinquenta crianças posa para o fotógrafo. Natal de 1913. A
legenda desvenda como uma resposta ao Natal lisboeta de 1957. Estas crianças,
tão sossegadas na espera do passarinho, são judias, muçulmanas e cristãs. Todas
unidas neste Natal que é uma festa tão bonita.
Abandono o pesado livro.
Divago sobre outros possíveis caminhos na História deste mundo, sempre tão
maltratada pelas ambições humanas. Quantas oportunidades perdidas, quantas
vidas sacrificadas por resultados tão pífios...
Hoje, as árvores de Natal não
mais unem povos de diferentes credos. Os caminhos deixaram de convergir. Não há
como voltar ao Natal de 1913.
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