sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

A TORCIDA COMO NEGÓCIO

 Rodrigo Rangel

Cenas da Copa: a torcida-empresa do Brasil

A torcida que representou o Brasil nas arquibancadas do Catar é uma empresa. Um negócio privado, com CNPJ e tudo (e que, claro, quer lucrar)



Torcedores do Brasil em jogo da Copa do Catar
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DOHA – Há teorias diversas que tentam explicar por que a torcida do Brasil em grandes competições, como a Copa do Mundo, não é tão vibrante quanto as dos grandes clubes brasileiros. No Catar, noves fora o número restrito de torcedores em razão da distância e do custo da viagem, a animação verde e amarela foi um tanto discreta nas arquibancadas – e ficou bem aquém da festa promovida pelos barulhentos argentinos, por exemplo, que ajudaram a empurrar o time de Lionel Messi até a finalíssima deste domingo.

Na terra da Copa, e em casa, sobraram críticas ao desempenho dos torcedores brasileiros que assistiram aos jogos presencialmente. Por exemplo, a de que era uma torcida extremamente elitizada, pouco afeita às arquibancadas e, até por isso, nem sempre suficientemente empolgada. Era uma torcida que, sim, até cantava – é verdade que os cantos tinham algo de infantis e lembravam os entoados em gincanas escolares –, mas nada que chegasse perto dos hermanos, ou dos marroquinos, ou mesmo dos portugueses. A festa não estava, enfim, à altura do que o Brasil representa para o futebol.

Por esse ponto de vista, os milhões de brasileiros que vibraram e choraram à distância, no Brasil, estariam representados no Catar por uma torcida eminentemente “farialimer”, para usar a já consagrada expressão definidora das figuras ricas e bem-sucedidas do mercado que dão expediente na avenida Faria Lima, em São Paulo, o coração financeiro do país.

Especialistas, como líderes das organizadas dos grandes clubes nacionais, atribuem essa dissonância entre a torcida do Brasil nos estádios e o espírito típico do torcedor-raiz brasileiro a fatores como os altos preços dos ingressos, mesmo nos poucos jogos realizados no país. Também à desconexão entre o grosso da população e a maioria dos jogadores do time, que atuam no exterior. Lembram que, no passado, as organizadas iam aos jogos da Seleção carregando torcedores que se viam em campo porque lá estavam os ídolos de seus clubes, com os quais tinham uma relação quase íntima. Havia mais liga, mais interação, defendem. Depois que a Seleção passou a ser formada quase integralmente por atletas que atuam na Europa, esse liame foi aos poucos se perdendo. Talvez estejam certos.

O mundo mudou, o futebol mudou e esta Copa mostrou que o Brasil está defasado não só em campo, mas também nas arquibancadas. Quem assistiu às transmissões pela TV direto de Doha provavelmente viu faixas e outros adereços com a inscrição Movimento Verde Amarelo. É, supostamente, uma “torcida organizada”, criada para tentar recuperar o fôlego perdido e empurrar a Seleção. Mas sua gênese e seu funcionamento, ironicamente, só reforçam a leitura de que, também nessa seara, há algo estranho ou fora do lugar no dito país do futebol. O MVA, como é conhecido, é uma empresa. Sim, a torcida que se organizou para representar o Brasil na Copa é uma empresa. Um negócio.

O movimento nasceu em 2008, em São Paulo, entre amigos do curso de administração da USP. À frente, Luiz Carvalho, 42 anos, conhecido pelo apelido de Vascão por ser torcedor fanático do Vasco da Gama. O grupo, que costumava ir junto aos estádios assistir a partidas do Brasil, concluiu que era preciso fazer algo porque a torcida parecia sempre acanhada, destoante das concorrentes, especialmente as de países vizinhos como Argentina e Chile, que àquela altura disputavam as eliminatórias para a Copa da África do Sul.

Torcida com holding e “business plan”

Coube a Carvalho dar forma à ideia. À época, ele era trainee no Itaú. Pediu demissão para tocar o projeto. Já começou com um plano de negócios. “Um dia ele chegou para mim com um business plan e disse que estava pedindo para sair porque precisava fazer a ideia dar certo. Já tinha previsão de receita e tudo”, diz Luiz Fernando Butori, diretor do banco até o ano passado. À época, ele era o chefe de Vascão. “Eu, como também gosto muito de futebol, o incentivei”, lembra. Na semana passada, Butori estava em Doha, no meio da torcida criada pelo ex-subordinado.


Em 2010, Vascão registrou o CNPJ da MVA Holding e Gestão de Negócios Ltda. A empresa foi considerada inapta pela Receita Federal tempos depois por omissão de declaração. Mas outras foram abertas para tocar o “negócio” da “torcida organizada do Brasil”: a Movimento Verde Amarelo Brasil Social, igualmente baixada por ter deixado de apresentar declarações ao Fisco, e a MVA Eventos e Tecnologia, registrada em 2019 e ativa até hoje. Esta última lista entre suas atividades comércio de artigos de vestuário e acessórios, produção de vídeos, gestão de ativos intangíveis não-financeiros, serviços de assistência social e organização de festas.

Vascão é sócio-administrador da firma. Ele também é dono uma construtora no interior de São Paulo, mas diz que o projeto da torcida é a grande prioridade de sua vida. “Hoje isto aqui é a minha atividade principal. Me dedico exclusivamente ao MVA”, afirma.

Reprodução/redes sociaisLuiz Carvalho, líder do Movimento Verde Amarelo, torcida organizada da Seleção do Brasil
Luiz Carvalho, o Vascão, é o idealizador da torcida e “dono” do negócio

Em Doha, fazendo jus a seu propósito, a torcida-empresa de Vascão realizou treze eventos para reunir os brasileiros e simpatizantes, cada um com 5 mil pessoas, em média, segundo os próprios organizadores. O “esquenta” antes dos jogos era em um parque privado da cidade. O MVA fez uma parceria com os proprietários e combinou de dividir o lucro. Era preciso pagar para entrar. O preço do ingresso, cobrado em rial, a moeda local, equivalia a pouco mais de R$ 100. Lá dentro tinha telões, bar e uma praça de alimentação. Houve também outras reuniões organizadas pelo grupo, como uma roda de pagode com feijoada – sem carne de porco, proibida em território catari em razão das rígidas regras do Islã. O prato feito, com arroz, farofa e não mais que duas conchas de feijão, também custava cerca de R$ 100.

Para a Copa, o MVA conseguiu patrocinadores de peso. Uma grande marca de cerveja e outra de refrigerantes, uma fabricante de remédios e uma conhecida agência de viagens de São Paulo. Vascão e um pequeno grupo de coordenadores recebem pelo trabalho. A receita vem, além da contribuição dos patrocinadores, da venda de produtos como camisas, da arrecadação obtida com os eventos e de um programa de sócio-torcedor no qual os associados pagam uma anuidade – o MVA diz ter, hoje, 2.200 inscritos.

“A história do movimento se construiu toda por trabalho voluntário. Desde o início, sempre foram pessoas engajadas nesse conceito, querendo fazer uma torcida diferente, e que eram voluntárias. Claro que, com o crescimento, a gente chegou para esta Copa precisando de algo mais profissional. Ainda estamos longe disso, mas temos hoje algo em torno de cinco pessoas contratadas. São pessoas que já faziam parte do movimento, que ganham um valor muito abaixo do mercado, que estão aqui por amor, mas que, sim, recebem alguma contribuição mensal”, diz Carlos Júnior, amigo de Vascão que ajuda a organizar as festas e faz as vezes de relações públicas.

“Só magnata no grupo”

No Catar, o MVA, que planeja estar presente (e faturar) também na Copa América, nas Olimpíadas e em outras competições internacionais, criou grupos de WhatsApp para trocar informações e divulgar os eventos, inclusive os de outros promotores. “Festa hoje”, anuncia uma brasileira em um deles. A festa é em um iate de luxo ancorado na orla de Doha. Os detalhes vêm a seguir. Os ingressos, com direito a comida e bebida, custam a partir de US$ 500 – mais de R$ 2. 500. Mesas VIP para seis pessoas podem ser reservadas por US$ 4.500. “Boraaaaa”, logo responde outra torcedora. De vez em quando, um ou outro protesta. “Só magnata no grupo. Por isso ninguém canta (nos jogos)”, provocou um dos participantes, com DDD da região de Juiz de Fora, Minas Gerais. Foi rapidamente repreendido. “Oxe… Pega o doido”, reagiu outro, com telefone de Alagoas.

O padrão do público dos eventos no Catar dá razão aos críticos que veem no movimento criado por Vascão uma iniciativa da elite para a elite: entre os torcedores envergando camisas da Seleção, há um desfile de acessórios de marcas estreladas. Louis Vuitton, Prada, Gucci, Channel, Balenciaga. Os iPhones de última geração estão por todos os lados. A despeito dos preços salgados das bebidas e comidas, a turma esbanja. Faz fila para comprar. Ali estava um estrato do Brasil que, por óbvio, não reflete o Brasil real. É claro que, em Doha, não se podia esperar algo muito diferente, já que viajar para a Copa era uma opção para poucos. Mas o perfil da maioria permite entender perfeitamente o abismo em relação às arquibancadas de casa.

A torcida como negócio – e um negócio privado – é mais um sintoma de que o futebol do Brasil, dentro e fora dos gramados, anda desconectado do espírito que o tornou o único a chegar ao topo do mundo cinco vezes. Vale refletir sobre isso enquanto é tempo.

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