As fotografias que desafiam padrões e identidades da artista Cindy Sherman
Cindy Sherman, a polêmica artista americana considerada uma das principais fotógrafas no campo da arte contemporânea
Cindy Sherman. Untitled Film Still
#9, 1978. Imagem: MoMa
Quem é Cindy
Sherman
Cindy Sherman (Glen
Ridge, EUA, 1954) é uma artista e fotógrafa americana que ganhou destaque no
mundo da arte contemporânea no final dos anos 1970 e é mais conhecida por
fotografias que desafiam padrões e exploram questões relacionadas à identidade.
Ela é associada à
chamada geração Pictures, um grupo de artistas que utilizava a apropriação de
fotografias e imagens de mídias de massa como ponto de partida conceitual em
suas criações artísticas. O grupo combinava cultura pop e arte contemporânea,
tensionando barreiras entre “baixa” e “alta” cultura.
Ao utilizar a
fotografia como meio principal para explorar o imaginário da cultura popular
americana, Sherman questiona qual é o papel da cópia ou da reprodução no campo
da arte contemporânea. Cindy Sherman se vale da ideia de que o cinema, a publicidade
e as mídias de massa são dotados de uma natureza opressiva e procura capturar
os efeitos tanto individuais quanto coletivos desse mecanismo através de suas
obras. Sherman também pode ser considerada como uma artista que trabalha com
apropriação, uma vez que muitos de seus trabalhos partem de releituras de
imagens tanto históricas quanto da cultura popular, alterando-as para abordar
temas como a construção da identidade de gênero.
Cindy Sherman. Untitled #474,
2008. Imagem: MoMa
A maior parte da
obra de Cindy Sherman é caracterizada pela própria artista incorporando
diferentes personagens, sendo ela mesma fotógrafa e modelo. Ela afirmou em
entrevista que tentou trabalhar com modelos, mas que nunca funcionou bem,
forçando-a a ter que refazer as fotos ela mesma. Sherman acredita que o motivo
desse insucesso ao trabalhar com modelos é o fato de ela não saber realmente o
que quer ou como articular seus desejos até ver a imagem.
Ao longo de sua
carreira, ela já posou como todo tipo de estereótipo presente no imaginário do
cinema e da mídia, desde estrela da Hollywood dos anos 1950 até monstro de
filmes de terror. A questão central do trabalho de Sherman é justamente o tema
da identidade, tanto individual quanto coletiva e o quanto as fronteiras entre
estas são borradas na contemporaneidade. Uma das leituras possíveis da obra de
Cindy Sherman é a de que a artista sugere que identidade, nada mais é do que a
alternância contínua entre diferentes estereótipos. Outros leem seu trabalho
como a expressão e exploração da própria personalidade da artista. Há ainda a
leitura de que Sherman, em seu trabalho, está examinando a noção de identidade
na sociedade contemporânea por uma perspectiva mais ampla.
Existe uma camada
performática em seu trabalho. Sherman lembra de se fantasiar desde a infância,
mas não como as típicas princesas e bailarinas. Ela explorava baús da família
com roupas velhas e se vestia como idosas ou monstros, se transformando em
personagens que tendiam ao lado mais perverso da fantasia, como a artista
relata no documentário Nobody is here but me (Ninguém está
aqui além de mim), de 1994.
“Eu gostaria de poder tratar todos os dias como Halloween, e me
fantasiar e sair para o mundo como um personagem excêntrico.” Cindy Sherman
Fato é que a
artista tem uma postura reticente ao falar sobre seu trabalho e dar
entrevistas, preferindo que o público tire suas próprias conclusões. Essa
indefinição discursiva abre espaço para especulação acerca de sua obra e suas
intenções e cria uma certa mística sobre seu trabalho e sua pessoa.
Cindy Sherman. Untitled #153, 1985.
Imagem: MoMa
Cindy Sherman e o
movimento feminista
Do ponto de vista
do movimento feminista, grande parte da obra de Cindy Sherman parece se tratar
de um comentário sobre a ideia de que ser mulher é uma performance socialmente
construída a partir do olhar masculino – especialmente no cinema, na publicidade
e na mídia, como comentado anteriormente. Por essa perspectiva, entende-se que
as mulheres sejam socializadas para performar uma feminilidade em todos os
espaços de sua vida. E são exatamente essas diferentes performances que a
artista explora em suas obras.
Tal leitura faz com
que o trabalho de Sherman seja fortemente associado com os movimentos
feministas que explodiram nos Estados Unidos nos anos 1960 e 1970 e se
desenvolvem até hoje. No entanto, a artista não se considera uma pessoa
particularmente politizada, apesar de admitir que seu trabalho pode ser
associado a temas políticos.
Untitled Film
Stills 1977-1980
Uma das obras mais
conhecidas e aclamadas de Sherman é Untitled Film Stills (Frames
de filmes sem título, em tradução livre), série que lançou Cindy Sherman no
meio artístico, no final dos anos 1970. Trata-se de uma série de 69 fotografias
feitas em filme analógico preto e branco ao longo de três anos, na qual a
artista personifica diferentes estereótipos femininos.
A inspiração da série vem da influência dos filmes europeus e dos filmes noir americanos dos anos 1940, 1950 e 1960. Estes gêneros cinematográficos frequentemente colocavam as personagens femininas como objetos sexuais ou ingênuas vítimas que precisavam ser salvas. Era comum na época que a divulgação dos filmes fosse feita através da distribuição de frames de cenas marcantes. Cindy Sherman se apropria dessa estética para a criação de Untitled Film Still, intencionalmente alterando ou potencializando os estereótipos femininos retratados ao ponto de causar um certo desconforto.
A imagem mais
discutida desta série é Untitled Film Still #21, na qual Sherman
aparece com uma jovem inocente do interior se aventurando na cidade grande para
ganhar a vida. A imagem traduz em seu plano e ângulo a linguagem
cinematográfica. No entanto, o faz de tal forma que provoca a sensação de que a
jovem está sendo observada ou julgada e que ela se arma de uma persona para
se defender desse olhar exterior. Coincidentemente ou não, esta era a realidade
de Sherman na época em que produziu a série. Ela havia saído da cidade onde
nasceu e se mudado para Nova Iorque, onde encontrou uma realidade hostil de
criminalidade nas ruas. No documentário Nobody is here but me (Ninguém
está aqui além de mim), Sherman afirma que sentia, na época, a necessidade de
adaptar sua postura nas ruas para poder sobreviver naquele ambiente.
History portraits
Entre 1988 e 1990,
Sherman realizou uma série intitulada History Portraits (Retratos
da História, em tradução livre). Nesta série, a artista recria obras clássicas
renascentistas, alterando a narrativa ao exagerar os aspectos artificiais que
compõem a encenação. Cindy Sherman vivia em Roma na época, seria de se esperar
que o ponto de partida para a criação desta série fosse visitas aos numerosos
museus com obras dos grandes mestres renascentistas espalhados
pela cidade. Porém, para criar a série, Sherman se manteve comprometida com a
cultura da reprodução e apropriação de imagens impressas, pois utilizou como
referência apenas imagens encontradas em livros.
Faz parte desta
série a obra Untitled #228, na qual Sherman recria o clássico
tema bíblico de Judite decapitando Holofernes. Nesta obra, como em tantas
outras releituras do tema, Sherman apresenta o assunto em um estilo clássico.
No entanto, ao examinar a obra com mais atenção, alguns detalhes se mostram
estranhos e desproporcionais. Parecem revelar o que tentam esconder: tudo não
passa de encenação, criação de uma imagem artificial, um trompe l’oeil.
Cindy Sherman. Untitled
#228, 1990. Imagem: MoMa
Neste tema familiar
para feministas e historiadores, Judite salva o povo israelita do tirano
general assírio ao usar seu charme feminino para seduzi-lo e o decapita quando
Holofernes cai no sono.
A imagem de Sherman
é carregada de ambiguidade, o que causa um certo desconforto no espectador.
Nela, Judite pode ser vista tanto como uma heroína quanto como um símbolo
sexual, uma vez que o sucesso de sua tarefa dependia de seu charme feminino. Na
versão de Caravaggio, inclusive, Judite seria originalmente retratada com os
seios nus. Imagens recentes de raio X mostraram que o véu que cobre os seios da
personagem foi uma decisão posterior no processo do artista.
Caravaggio. Judite e Holofernes, 1599.
Imagem: Google Arts and Culture
Cindy Sherman
produz incessantemente desde os anos 1970. Além das séries fotográficas aqui
citadas, muitas outras obras da artista podem ser exploradas, cada uma em suas
particularidades. No entanto, o fio condutor de seu trabalho se mantém o mesmo
ao longo das décadas: identidades que se constroem e se desconstroem,
apropriações e personagens estereotipados em imagens minuciosamente
construídas.
O trabalho de
Sherman já foi objeto de infinitas especulações. A própria artista não se sente
particularmente inclinada a analisar seu trabalho muito profundamente e não dá
muita importância àqueles que o fazem. A artista já afirmou em entrevistas que
prefere que o público seja capaz de se relacionar com o seu trabalho sem
precisar ler sobre ele. No entanto, ela não nega as implicações políticas e
sociais de sua obra. Ela é, afinal de contas, considerada uma das principais
fotógrafas da crítica social na contemporaneidade.
Luísa Prestes, formada em artes visuais pela UFRGS, é artista,
pesquisadora e arte-educadora. Participou de residências, ações, performances e
exposições no Brasil e no exterior.
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