Do PT das lutas sociais ao PT do Poder
José de Souza Martins
Seres humanos destituídos de contradições são seres inanimados. Porém, aqueles que, ainda vivos, intitulam-se, pelo menos no tremular das bandeiras que defendem, destituídos de contradições, decerto, serão cobrados sumariamente pela mínima brecha de equívoco ou de ação à espreita que se revele afirmando aquilo que um dia, com veemência, fora negado. É nessa lama que o maior partido político brasileiro segue patinando. E o olhar aguçado do nosso maior intelectual vivo – não, não estou falando do príncipe bostético do finado PSDB –, José de Souza Martins, não deixou passar em vão, não necessariamente as contradições do PT, mas, mais conclusivo, a alteração quântica que ocorre quando o partido, enfim, chega ao maior cargo público de nossa república.
O apanhado de artigos escritos ao longo dos anos de Governo Lula até o começo do agravamento da crise política mirada sobre Dilma Rousseff nos dá uma dimensão ampla e crítica das ações petistas totalmente inversas ao ideal que pairava no imaginário da densa massa militante que, diante das mais adversas posturas vindas do Executivo, se dividiu entre aqueles que, num misto de constrangimento e arrogância, permaneceram fiéis ao sebastianismo lulista, e aqueles que preferiram dormir com a consciência menos pesada nos braços ainda recém-formados do PSOL.
Enquanto lia os textos de José de Souza Martins, chegava à conclusão precisa de que somente quem, contemporâneo, veio do ABC paulista é capaz de saber a fundo detalhes e controvérsias a respeito de Lula – isso só é possível se não se cai no delírio messiânico sobre o outrora torneiro mecânico. Martins é homem nascido em São Caetano do Sul, cientista social de formação, não teve vida fácil: trabalhou na infância e foi operário de fábrica. Viveu intensamente e já como homem dos estudos o fervilhar das greves no final dos anos 1970. Viu o nascimento do líder sindical, mais conciliador do que agitador das massas. Viu também o PT se formando e se transformando.
Entre as suas análises contidas nos mais de 60 artigos escritos durante os anos 2002 e 2015, as que melhor sintetizam, sem cair na estupidez maniqueísta adotada nos dias atuais, o que se tornou o PT estão aqui descritas: “... a mediocridade das ambições desmedidas, a falta de lucidez política e a falta de um projeto de nação.” A conclusão coesa e totalmente coerente com os fatos que José de Souza Martins nos apresenta, auxiliada pelo distanciamento cronológico (que em muito ajuda na reflexão), proporciona pensarmos que ainda estamos muito longe de atingir um patamar satisfatório de formação política da sociedade brasileira. Porque sempre defendeu e, enquanto militante, agiu em torno da causa nobre de politizar tudo ao seu redor, era sim dever do PT, quando no governo federal, alicerçar medidas que ajudassem a dar os primeiros passos em favor de tal formação. Mas o vício do poder pelo poder, segundo Martins, fortaleceu o lulismo – que, como todo populismo, carrega o espectro da antipolítica.
“O PT cresceu nestes anos todos questionando a legitimidade de todos e de tudo. Foi apresentado ao país como o único partido da integridade, da decência e da competência, o que não é verdade em nenhuma realidade política e em relação a partido algum.” O misticismo, revelado neste livro, tem ainda hoje como premissa a ideia de que o PT é apenas a corporação de um profeta libertador. O PT pagou um alto preço pelas escolhas e alianças que fez. Alicerçou-se na mais rasa ação típica dos coronéis que tanto criticou. Tão acostumado ficou de estar no poder que neste exato momento segue tentando fazer as pazes consigo e com a massa que se sentiu traída, ainda batendo cabeça defendendo pautas legítimas, porém, fora de hora, como a do “Lula livre” em plena paralisação social contra a reforma da previdência.
O que José de Souza Martins revela não é nenhum mistério que andava à espreita. Nem mesmo tem conotação oposicionista qualquer dos textos compilados no livro. Faz-se presente, à medida que adentramos e relembramos ações e omissões do PT enquanto partido no poder, a certeza de que mais do que petista o eleitorado das quatro eleições anteriores a Bolsonaro revelou-se lulista – o que nos confere a convicção de que, caso Lula migrasse para o outro partido, os votos o seguiriam. Todo o bom serviço prestado pelo PT antes de 2002 deixou apenas o legado do ressentimento, a ascensão da extrema direita no Brasil e a triste constatação e aceitação de que no poder qualquer um se corrompe.
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