Em face das pesquisas conduzidas por competentes equipes de economistas, de levantamentos realizados em diversos centros, de vários estudos cujos resultados convergem, é hoje impossível negar o crescimento brutal da desigualdade no mundo. Tampouco dá para esconder que a forma contemporânea do capitalismo financeiro alimenta esta tendência e responde por sua contínua aceleração.
Só com muita torpeza se pode desconhecer a gravidade deste problema. Também só a ignorância mais tosca, ou uma profunda má fé, ou as duas coisas juntas, podem encobrir outra séria ameaça que pesa sobre a humanidade e compromete a vida no planeta. Não há como ocultar que esta ameaça deriva da mesma fonte, ou seja, do mesmo modo inconsequente de exploração econômica. Todavia os sérios riscos que tanto a desigualdade quanto a crise ecológica representam são minimizados por quem tem a responsabilidade de enfrentar esses desafios terríveis.
Não é só isso. Acontece ainda outra coisa espantosa: está em curso um esforço sistemático de ocultar essa realidade. É o que chamo de obscurantismo programado, perturbação que hoje se espalha pelo mundo e engolfa nosso país. Seu móvel é a manutenção de privilégios de muito poucos.
De acordo com um relatório recente do Crédit Suisse, hoje o 1% mais rico da população detém 45% da riqueza global e os 50% mais pobres ficam com menos de 1%. Não se consegue manter esse estado de coisas sem um grande investimento na desinformação, na mentira e na estupidez. A pura violência não chega para tanto, por mais que ela seja incrementada. (De resto, ela também se alimenta da estultice).
O caso brasileiro é exemplar. De acordo com a Pesquisa Desigualdade Mundial 2018, coordenada por Piketty, quase 30% da renda do Brasil está concentrada nas mãos de 1% dos habitantes do país. E isso ocorre num momento em que a boçalidade, a empulhação e a ignorância se veem aqui cultivadas, exaltadas como nunca. Terraplanistas proliferam. Pessoas que se consideram educadas professam o negacionismo em matéria de aquecimento global e de alterações climáticas de origem antrópica, apesar da reiterada confirmação desses fatos por instituições de peso (como a própria ONU, entre outras), com respaldo num amplo consenso de autoridades científicas de toda a terra.
O mais grave, porém, não é o número espantoso de arrogantes analfabetos funcionais em nosso país. É o fato de que a ciência se vê aqui desvalorizada — 30% dos brasileiros hoje declaram não acreditar nela — e uma política de governo promove com afinco essa desvalorização. A cultura é atacada com furor, a educação vê-se tratada com descaso e brutalidade, ciência e tecnologia passam a coisa sem importância. Convém indagar por que isto sucede.
O obscurantismo ora em voga está associado à recente expansão da extrema direita em diferentes países do mundo. Essa expansão não acontece por acaso. Tem a ver com uma exploração política do populismo “apolítico” e com uma estratégia bem montada que canaliza a insatisfação com os desvios da democracia de modo a manietá-la, preservando uma estrutura de privilégios, ou seja, mantendo e até incrementando a desigualdade tanto entre segmentos da mesma população como entre países e regiões econômicas. Ora, essa meta não pode ser declarada, esse objetivo tem de ficar oculto. Os beneficiários do processo, os detentores de privilégios, os poucos que concentram riqueza em grau extraordinário, precisam investir em obscurantismo e desinformação.
O trabalho de desinformação — que implica também em difusão de “informação” falsa e enganosa — é realizado de diversos modos, entre os quais avultam o financiamento de think tanks conservadores e de equipes formadas tanto por pessoas como por robôs que atuam em cadeia nas redes sociais transmitindo fake news. Chega à montagem de esquemas sofisticados de direcionamento da opinião pública via organizações do tipo da Cambridge Analytica, que viciou a consulta sobre o Brexit, interferiu na eleição presidencial nos Estados Unidos e abriu caminho para a instalação de governos fascistas em diferentes países, entre os quais o Brasil. Mas este procedimento de corrupção da informação é apenas um dos meios de esconder o jogo e impor à maioria a consagração dos interesses de poucos. Para garantir a eficácia de novos processos de colonização, de sujeição, de exploração, é preciso também recorrer às trevas. Em nosso país chegamos ao máximo: instalou-se um governo tosco que faz do obscurantismo sua bandeira: fomenta a censura, abre guerra contra professores, artistas, cientistas, pesquisadores. Contesta sem argumentos o trabalho de instituições científicas de peso e nelas interfere com o claro propósito de distorcer informação manipulando os dados a seu gosto, como sucedeu no INPE.
O presidente tem dificuldade de se exprimir de forma articulada. Seus pronunciamentos se limitam a pequenas declarações, em geral disparatadas, grosseiras, chulas, pobres de sentido, a desafiar o bom senso. Mas se é fato que ele não hesita em dizer coisas absurdas e falsas, às vezes também lhe sucede ser franco. Já disse que é favorável à tortura, declarou sonhar com uma guerra civil na qual morressem trinta mil pessoas, prometeu mais de uma vez matar os adversários, confessa seu desprezo pelos direitos humanos. Também deixou claro que nada sabe de economia, de saúde, de educação, de planejamento, de direito, de administração; enfim, não escondeu de ninguém que lhe falta por completo qualquer vestígio de competência para o cargo. Escolheu um ministério que se parece com ele em tudo. Principalmente na ignorância. Não admira que em pouco tempo de sua gestão a desigualdade tenha crescido de forma assustadora e brutais desastres ecológicos se venham acumulando. No particular, seu governo não se contenta em ser omisso. Empenha-se o tempo todo em agravar esses problemas.
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