Mestre do restauro, José Dirson Argolo dedica-se há 40 anos à preservação do patrimônio baiano
Tatiana Mendonça
Com uma luva azul e um cotonete gigante de madeira nas mãos, ele explica que essa é a parte mais complicada do processo. Complicada, não. Irreversível. Se um restaurador escolhe o produto químico errado para limpar a tela, já era. Não tem volta. Um trabalho de séculos pode desaparecer de repente, que as obras, assim como a vida, são passáveis e frágeis. A etapa da pintura, ao contrário, ainda dá para corrigir.
No andar superior do seu ateliê, no Garcia, José Dirson Argolo debruça-se sobre uma tela do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, maltratada pelo tempo. Há quatro décadas, ele se ocupa de dar novo viço ao que ficou gasto. “É toda uma vida dedicada à preservação do patrimônio”, foi a primeira frase que disse, como se precisasse de apresentação.
“Quase toda igreja de Salvador tem o dedo dele. Ou toda ela ou parcialmente, ou um pequeno elemento”, atalha Waldemar Silvestre Castro, que espiava a conversa. É o seu sócio no Studio Argolo, fundado em 1983. Católico por herança de família, José Dirson ri, como se a modéstia o proibisse de concordar discursivamente.
Foram de fato tantas que já perdeu a conta – logo ele, um homem de memória prodigiosa. A mais recente delas é a Igreja Nossa Senhora da Graça, uma das mais antigas do Brasil, onde estão os restos mortais de Catarina Paraguaçu. A reforma já dura quatro anos, período em que a igreja ficou fechada. As obras devem continuar nos primeiros meses de 2020.
Mas se é para falar de igreja, sua memória mais preciosa vem dali de perto, do Politeama. No início da década de 1990, José Dirson restaurou a Igreja de São Raimundo. O financiamento não veio de dinheiro público nem de entidade nenhuma. Foram os paroquianos que se juntaram para angariar recursos. “Era muito emocionante ver pessoas doando alianças de casamento, anéis de formatura, fazendo doces para vender nas feiras, rifas”.
A igreja estava toda branca. Nos altares laterais, as pinturas ficavam debaixo de oito camadas de tinta. No altar-mor, de 14. “Descobrimos toda a pintura do século 18 intacta. As irmãs vibravam a cada descoberta”, lembra.
Ver o branco transformar-se em arte, feito uma viagem mágica no tempo, é coisa com a qual ele já está acostumado. Foi assim também no Palácio do Rio Branco, este que está para virar hotel. José Dirson é terminantemente contra, diga-se de passagem.
Pensa que um lugar que abrigou tanta gente importante tem que continuar público, e nem sabe se o centro da cidade precisa de tanto hotel. “Só acredito na revitalização do Centro Histórico de Salvador se virar também residência da classe média, de artistas, de funcionários públicos. Para que haja vida, entendeu? Se nós baianos temos medo de andar por ali de noite, porque fica tudo vazio, imagine turista”.
Pois. Mas voltando às pinturas cobertas, elas apareceram para ele no período de restauro do Palácio, em 1984. Estavam escondidas embaixo de 10, 12 camadas de tinta, que ele e sua equipe desvendavam com bisturis cirúrgicos.
E que história doida é essa de o povo ir cobrindo tudo assim, sem a menor cerimônia nem consideração com os que vieram antes? Ele explica que foi uma questão de ignorância, sim, mas principalmente de mudança de gosto, somada aos estragos do tempo. “Na época em que essas igrejas foram construídas, imperava o barroco. Quando veio o neoclássico, já era um estilo mais simples. E aí vinha um padre e pintava. No Palácio Rio Branco, a mesma coisa. Provavelmente, foram os próprios governadores que mandaram pintar. Chegou um período em que alguém deve ter achado aquela sala pompeana com aquele fundo vermelho muito agressivo”.
Do bronze à fibra de vidro
Debaixo de mais camadas de tinta – “quase 50” – José Dirson recuperou as expressões originais dos Caboclos, heróis da Independência da Bahia. “Antes, pareciam uns monstros”. Isso foi em 1998. Desde então, cuida para que desfilem perfeitos no 2 de julho.
O monumento portentoso batizado com a data, no Campo Grande, também foi recentemente restaurado por ele e sua equipe. A entrega aconteceu em setembro do ano passado. Para que estivesse como antes, foi preciso repor cerca de 250 quilos de bronze, que haviam sido roubados. “Eles vendem por cinco, dez reais o quilo, quando custa mais de R$ 100”.
Como trata-se do principal monumento da cidade, como diz José Dirson, o restauro foi feito com bronze mesmo. Mas hoje, quando uma obra pública é vandalizada, o mais comum é reconstituir as esculturas com fibra de vibro.
Foi o que fez com a índia concebida por Pasquale de Chirico que fica em frente à Igreja da Ajuda, no centro. “Baseado na documentação fotográfica, o escultor daqui do estúdio modelou a escultura em barro. Do barro a gente fez uma forma em gesso e depois a forma em resina. Aí fizemos o protótipo, reproduzimos em resina e fibra de vidro e pintamos do mesmo tom do bronze. Fica mais barato e com menos risco de ser vandalizado”.
Coleção de 500 obras
Nessa vida de restaurador, ele acabou amigo de muitos artistas. Quando alguém ligava para Carybé para dizer que um quadro seu tinha estragado, o argentino dizia logo que não era mais com ele. “Quem vai resolver é Argolo”, respondia.
A mesma coisa acontecia com Sante Scaldaferri, Jenner Augusto, Floriano Teixeira. Muitas vezes, o trabalho de restauro era trocado por quadros, e José Dirson abriga em casa uma coleção com mais de 500 obras – muitas delas, imagens sacras. “Pretendo, no futuro, doar para uma instituição”.
Quando era pequeno, queria, ele mesmo, ser pintor. Lembra de desenhar bandeiras e ganhar concursos na escola em Jaguaquara, onde nasceu. Veio para Salvador fazer o ginasial. Em 1971, entrou na Escola de Belas Artes (EBA) da Ufba. No segundo ano, quando fez a disciplina Conservação & Restauro, descobriu que existia um sonho maior que o de ser artista.
Nesta época, ele também trabalhava na universidade e o seu chefe, o arqueólogo Valentin Calderón de La Vara, o incentivou a fazer uma especialização. Calderón lhe arrumou uma bolsa, e o professor Romano Galeffi, que dava aulas na EBA, escreveu uma carta de recomendação ao reitor da Università Internazionale Dell'Arte, em Florença, na Itália.
Em 1977, ele chegou ao país e passou dois anos por lá, estagiando no laboratório da Superintendência do Patrimônio Histórico e Artístico da cidade e estudando. “Imagine levantar com dois, três graus. Pegava no laboratório às 8h e saía às 13h. Depois pegava a faculdade das 14h até 19h. A universidade era na casa onde morou Botticelli”.
Centro de restauro
Quando voltou ao Brasil, foi trabalhar no Museu de Arte Sacra, a convite de Calderón. O espanhol tinha uma ideia antiga de criar um Centro de Restauro na Bahia, e com Roberto Santos, ex-reitor, no governo, achou que a oportunidade tinha chegado. O centro seria no Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), para onde José Dirson foi cedido por uns anos. Por questões políticas, o projeto nunca vingou. Um nunca que se estende até os nossos dias.
Ele acabou fazendo concurso para professor da Ufba, onde deu aulas por mais de 30 anos, e montou seu ateliê, inicialmente no quarto de empregada de casa. Seu primeiro cliente particular foi Luís Viana Filho, ex-governador e senador na época.
Quando o escritório deixou de ser doméstico, passou a convidar os estudantes mais talentosos para trabalharem com ele. ”A minha equipe até hoje é formada por ex-alunos”. Uma delas é a museóloga Jacildes Gonçalves, que estudou com ele em 1998 e trabalha por lá há mais de 20 anos. “Cada dia aqui é uma descoberta. Ele é como um pai da gente, que dá puxão de orelha, diz para terminar mais rápido, agrada, ensina”.
Numa carreira vitoriosa, que o fez grande, o fez mestre, José Dirson só se ressente de que a Bahia não tenha um curso de especialização em restauro ancorado na EBA. Ele até criou um projeto, que não saiu do papel. “O que até hoje impossibilitou a EBA de criar um centro de restauro, ter um ateliê? Poderia haver uma articulação com os governos. Não dá para formar um profissional apenas com aula teórica. Infelizmente, a gente não pode contar vitórias com o quadro atual da restauração na Bahia”.
Ele reclama que hoje são as empresas de construção que cuidam da restauração do patrimônio, contratando profissionais pouco qualificados. “A maioria dos donos dessas empresas não conhece absolutamente nada de história, de técnica de restauro, de filosofia, nem de nada. Contratam pessoas de segunda e terceira categoria. O resultado é desastroso”.
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