“Arembepe valia a viagem!” Quem falou isso, no inverno de 1962, foi o universitário americano Conrad Kottak, que para lá embarcou, com quatro colegas, em uma caminhonete Rural com tração nas quatro rodas. Foram 55 quilômetros da estrada sinuosa e lamacenta no litoral norte de Salvador, em uma viagem de três horas que atravessou a ponte antiga sobre o rio Joanes, seguiu por Abrantes e alcançou Arembepe, na época uma aldeia de pescadores isolada do mundo.
O “professor Conrado”, como os moradores chamavam o gringo, foi a Arembepe fazer o estágio de campo para graduação na Universidade de Colúmbia, de Nova Iorque. Se amarrou na vila, fez amigos e retornou 16 vezes entre 1962 e 2004, para realizar atualizações do seu trabalho, que lhe rendeu o doutorado e o livro “Assault on Paradise” (Illinois: Waveland Press, 2018).
Sucesso de vendas lá fora e referência internacional em Antropologia, o livro, recheado de informações preciosas sobre Arembepe e entorno ao longo de 40 anos, continua ignorado por aqui.
O parceiro Sérgio Siqueira descobriu esse livro quase por acaso, quando estávamos organizando uma série de depoimentos incríveis de pessoas que viveram a “invasão hippie” do final de dos anos 60 e início dos 70, que tornou Arembepe e a Aldeia internacionalmente conhecidas.
Três celebridades do cinema passeiam nas dunas de Arembepe: Jack Nicholson, Roman Polanski e Dennis Hopper. Foto icônica de autor não identificado.
Ainda há muito o que se dizer sobre o carisma ambiental e astral que atraiu para lá astros de primeira grandeza como Janis Joplin, Mick Jagger e Keith Richards, o cineasta Roman Polanski, os atores Jack Nicholson e Dennis Hopper, que tinham acabado de atuar no filme icônico Easy Rider, Richard Gere, tropicalistas, roqueiros brasileiros, artesãos, vagamundos, estudantes de férias ou fugidos das escolas, escritores, artistas plásticos, outsiders, um mundão de gente do underground.
Esse material nos permitiu iniciar, a quatro mãos, um novo trabalho, o livro “Aldeia do Mundo”, agora em fase final, seguindo a parceria criativa que rendeu “Anos 70 Bahia”. No processo de montagem, que traz depoimentos de gente da pesada da contracultura e conta com a participação preciosa da jornalista e empresária Claudia Giudice, impressionou-nos a relevância da obra de Conrad Kottak, da qual traduzimos e agregamos partes. Um resgate, quando menos, das informações – em grande parte inéditas – que passaram batido nesta terra onde pouco se lê e pouco se aprende.
Vale antecipar aqui alguns trechos do livro de Kottak, começando pelas primeiras impressões do autor: “Areia, lagoas e mais areia depois da lama. Depois de chuvas pesadas, cruzar as lagoas que circundavam Arembepe a oeste fez o carro parecer um barco a motor. As águas invadiram o piso da cabine e algumas vezes interrompeu a máquina. Depois das lagoas vieram as dunas com densos coqueirais, aumentando a dificuldade. Para alcançar a vila, foi necessário procurar marcas de pneus de outros carros e pisar fundo no acelerador”.
A objetividade acadêmica do doutor sucumbiu à visão do paraíso, e ele assim descreveu a emoção da chegada: “Não consigo imaginar um lugar com tanta beleza. A vila se estendia ao longo de uma estreita faixa de terra (menos que um quilômetro) entre o oceano e as lagoas. Era mais espetacular do que qualquer ilha dos Mares do Sul que visitei depois”.
Kottak pesquisou em detalhe – e com rigor antropológico – a comunidade. Em 1964, havia em Arembepe 730 moradores e 280 casas, e três quartos dos adultos ocupados eram pescadores. No decorrer das quatro décadas, registrou o adensamento das duas praças centrais e o crescimento para o sul (Piruí), para o norte (Aldeia Hippie) e para oeste (ruas laterais, Caraúnas, Volta do Robalo e mais recentemente Poço das Águas). Testemunhou a lagoa marrom da poluição da Tibrás, que por pouco não destruiu o futuro de Arembepe, o asfaltamento da Estrada do Coco, que “suburbanizou” a vila em relação a Salvador, e a confirmação da vocação turística com a multiplicação de bares, restaurantes e pousadas.
O livro preenche lacunas de informações e estabelece marcos de veracidade em meio a múltiplas versões sobre o enxame mochileiro. Os registros indicam que havia hippies em Arembepe, já, em 1996-1967. Vieram inicialmente no verão e eram principalmente brasileiros. Quando o movimento tornou-se internacional e a geração flower power se dispersou depois do festival de Woodstock, jovens de todo o planeta, incluindo americanos, começaram a “pingar” em Arembepe. Em 1970 e 1971, “as gotas viraram inundação”.
Para o pesquisador, “os hippies apreciavam não somente a beleza natural, mas também o custo barato da alimentação e aluguel em Arembepe. As cabanas nas franjas norte e sul da vila podiam ser alugadas por quase nada”. Sobre a geografia da Aldeia, “na área sul ficava a concentração principal, com dez choupanas com tetos de palha. Ao norte dessa área, havia um coqueiral com cabanas feitas inteiramente de palha. Um pouco adiante delas estava o rio Caratingui (também conhecido como Capivara), onde vimos duas tendas minúsculas. A parte seguinte da aldeia era uma versão pobre de um albergue de jovens. Não se cobrava aluguel pelas choupanas de palha, onde poderíamos encontrar hippies americanos, ingleses, alemães, italianos e dinamarqueses”.
O livro “Aldeia do Mundo”, como tudo o mais, resistirá ao longo período de hibernação imposto pelo Covid 19, e será lançado nos primeiros meses de 2021, quando a situação geral estiver normalizada. As fotos em preto e branco, em sua maioria da década de 60, integram o livro de Conrad Kottak.
As cinco primeiras fotos, em preto e branco, integram o livro "Assault on paradise".
Estive em Arembepe em 1969. Fumei muita maconha ali.
ResponderExcluirQuando retornei, já morando há alguns anos em Salvador, acho que 2012, nem reconheci a velha aldeia de pescadores. Degradada e descaracterizada. Fake.