Turquia: por que Santa Sofia voltou a ser mesquita e o que isso significa
Felipe van Deursen
Na sexta, 24 de julho, as preces voltarão a acontecer regularmente sob o embasbacante domo de Santa Sofia, após um hiato de 85 anos. O governo turco anunciou, semana passada, que o grande edifício, transformado em museu em 1935, voltará a ser uma mesquita. A notícia repercutiu bastante no Ocidente. A Unesco convocou a Turquia para discutir o assunto com urgência e declarou que pode rever o status de patrimônio da humanidade concedido à Santa Sofia.
A Igreja Ortodoxa, previsivelmente, condenou a medida imposta à sua antiga basílica. O Conselho Mundial de Igrejas, organização ecumênica que representa diversas denominações cristãs (mas não os católicos apostólicos romanos), escreveu que a medida vai "inevitavelmente provocar incertezas e desconfianças" quanto ao futuro e pediu que Ancara revisse a decisão.
Até o papa Francisco, que, em termos religiosos, não tem muito a ver com o assunto, se mostrou "aflito". A rival Grécia declarou que se trata de uma "provocação aberta ao mundo civilizado". Cirilo, o patriarca ortodoxo russo, achou que seria melhor deixar as coisas como estavam. Se a rixa com a ortodoxa Grécia, que já foi possessão do antigo Império Turco-Otomano, é nítida, aquela com a Rússia, maior país ortodoxo do mundo, é mais complexa.
Até ser tomada pelos otomanos, em 1453, a antiga Constantinopla era o coração do mundo cristão ortodoxo. A partir de então, reconquistar a cidade para o cristianismo era um desejo dos russos, que se viam como herdeiros do Império Bizantino e – por que não? – também estavam de olho nas conexões marítimas oferecidas pela geografia única de Istambul. Caso o Império Russo tivesse vencido a Guerra da Crimeia (1853-56), talvez nós não a chamaríamos nem de Constantinopla nem de Istambul (muito menos de Bizâncio), mas de Czargrado. Se no passado Turquia e Rússia já foram inimigos declarados, hoje não é assim, como lembra Igor Gielow na Folha de S. Paulo. Turcos e russos apoiam lados os nas guerras civis da Líbia e da Síria, mas um gasoduto liga os dois países e os turcos compraram sistemas antiaéreos de Moscou. É do jogo.
Istambul, 1852, pouco antes da Guerra da Crimeia.
No lodaçal de opiniões do Twitter, teve quem aplaudiu, teve quem condenou a novidade, segundo apurou a Al Jazeera. O empresário paquistanês Mir Mohammad Alikhan, primeiro muçulmano dono de um banco de investimentos em Wall Street, congratulou o mundo islâmico. Joseph Lumbard, autor de livros sobre o Corão e professor universitário no Catar, lembrou que quem se preocupa com a antiga basílica deveria olhar os 3 milhões de uigures que tiveram suas propriedades e mesquitas destruídas na China nos últimos anos. (Não que eu ache que uma coisa anule a outra, mas é só pra gente ver o rumo que o assunto pode tomar. No Brasil, teve quem se referiu a Santa Sofia meramente como "basílica", ignorando mais de 500 anos de história). UMA HISTÓRIA QUE SE REPETE Acontece que um templo de uma religião xis ser convertido em um de uma fé ypsilon não é algo raro. Pelo contrário.
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