Claro que não estou gostando de ficar preso à minha casa. Catorze meses sem nem passar um fim de semana em Boipeba, é dose. Mas dizer que estou sofrendo de claustrofobia, me afogando na deprê, honestamente, não. Além de ter uma casa espaçosa e arejada, a visão cinemascope da Baía de Todos os Santos com som Dolby da passarada é vitamina quotidiana.
Aprendi a limitar meus voos. A relativizar meus sonhos e
delírios. Intermináveis papos pelo whatsapp. Longas leituras, como para
recuperar um atraso de meio século. Cozinho. Adapto ou invento receitas. Escrevo.
Com volúpia. E assisto a filmes e documentários. Foi procurando Carmen Jones e
Dorothy Dandridge, que acabei encontrando um filme que substituiu a máscara por
um largo sorriso durante 77 minutos.
Os EUA entraram na primeira guerra mundial um ano antes do
fim, mas não demoraram um mês para mandar soldados negros para a matança. Na
segunda guerra, um milhão de negros –carne barata para as balas hitlerianas –
foi combater na Europa. Talvez este tenha sido o elemento detonador para a
tomada de consciência do afro-americano. Depois de serem tratados como gente,
depois de combater e morrer, voltaram a enfrentar o “No dog no black” ianque. Nascia o ativismo para uma real
democracia, sem apartheid.
1943 é o ano-chave. De repente Hollywood descobre que os
negros existem, têm alma e mais: poder aquisitivo. Neste mesmo ano os diretores
Andrew L. Stone e Vicente Minelli enfrentam a inovadora tarefa de dirigir
filmes só com negros. De Minelli, a cópia do “Cabin in the sky” – seu primeiro
filme - no Youtube não tem a mínima condição de ser visionada. Em
contrapartida, “Stormy weather” é pura delícia e precioso documento sobre
grandes artistas negros daquela época. Além de Cab Calloway, Bill Robinson e os
fabulosos Nicholas Brothers que impressionavam até o Fred Astair, e a sofisticated lady Lena Horne, que anos mais
tarde seria obsessiva referência de Michael Jackson. As coreografias são
assinadas por Katherine Dunham, antropóloga e dançarina, que mergulhara no
resgate artístico da diáspora africana.
Lembrou-me ter comprado minha primeira entrada de teatro em
Casablanca aos 14 anos, sem nada falar a minha família, para ver a Companhia de
Dança Katherine Dunham. Saí com a cabeça dando voltas. A leveza dos corpos, o
impacto das percussões e a rica variedade dos figurinos explicavam o sucesso
das apresentações na Europa. No mesmo espetáculo, a voz ácida de Eartha Kitt,
outra das pioneiras do ativismo antissegregacionista, ainda hoje uma das minhas
cantoras favoritas.
Este filme seria o primeiro passo de uma longa caminhada que
passou por Rosa Parks, Martin Luther King até chegar a Barak Obama. E que está
longe de acabar.
Dimitri Ganzelevitch
A Tarde. Sábado 17 de Abril 2021.
Dimitri, se não tenho a oportunidade de ler você na A Tarde, leio aqui em seu Blog, sua escrita leve e legante, parabéns por resgatar essa visão do ativismo negro nos EUA.
ResponderExcluirLeia escrita leve e elegante
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