domingo, 4 de abril de 2021

MÚSICA DE GELO

 

Tocando de cabeça fria: esses artistas fazem música usando instrumentos de gelo

Utilizando trompetes, harpas e tambores congelados, uma nova forma de arte segue as trilhas da natureza.


O pioneiro da música de gelo, Terje Isungset, fundador do selo All Ice Records, faz uma gravação na Ilha Baffin, Canadá, num dia de -40 ºC.

POR LOLA AKINMADE ÅKERSTRÖM



Pequenas explosões de gelo que imitam o som de pratos. Notas surdas e profundas que lembram tambores de metal. Esses são alguns dos sons surpreendentes que o grupo de percussão siberiano Ethnobeat criou a partir de instrumentos de gelo do lago congelado Baikal, na Rússia, em um vídeo viral de 2012 que apresentou a música de gelo a milhões de pessoas ao redor do mundo.

Mas melodias semelhantes e assombrosas já vinham preenchendo as noites escuras do Ártico na Noruega e na Suécia há diversos anos. Em 2000, o compositor e percussionista norueguês Terje Isungset realizou o primeiro concerto de música de gelo do mundo, dentro de uma cachoeira congelada em Lillehammer.

Seis anos depois, Isungset fundou o Festival Anual de Música de Gelo da Noruega, atraindo aventureiros curiosos dispostos a enfrentar temperaturas abaixo de zero para experimentar essa forma única de conexão com a natureza através da música. (O festival deste ano foi cancelado devido à pandemia, mas ele está planejando transmitir um show ao vivo em 14 de março.)

Para Isungset, que já experimentava compor música com elementos da natureza, como pedras e madeiras, sua incursão no gelo foi um avanço natural. “Quando comecei a tocar música em gelo transparente, achei aquele som puro incrivelmente quente e suave comparado com o do gelo do solo que esmagamos com os pés, que é um som muito frio”, recorda.


Em fevereiro de 2020, o Festival de Música de Gelo da Noruega chega ao fim na vila de Finse, próximo à geleira Hardangerjøkulen.

Isungset já realizou centenas de concertos de música de gelo, incluindo um no Banquete do Nobel de 2017, e gravou oito álbuns sob o selo All Ice Records, de sua propriedade. Ele considera essa forma de arte o trabalho de sua vida.

Então, o que exatamente é música de gelo? Os músicos usam gelo natural para percussão ou tocam instrumentos feitos de gelo. Muitos desses instrumentos podem parecer familiares, mas com a música de gelo, a natureza ocupa o centro do palco — e traz mais do que algumas notas imprevisíveis. Tanto a fabricação dos instrumentos quanto a execução da música são processos que não podem ser totalmente controlados, o que só faz aumentar o apelo dessa arte.

Criando os instrumentos

Os instrumentos entalhados podem ser totalmente feitos de gelo, como trompetes e percussão, ou híbridos, como harpas, nos quais o corpo principal é de gelo com cordas de metal presas. Isungset colabora com o premiado escultor de gelo Bill Covitz, que mora nos Estados Unidos, mas viaja para concertos ao redor do mundo para fabricar instrumentos no local.

Outro artista americano, Tim Linhart, se concentrava em produzir esculturas de neve e gelo nos Estados Unidos antes de se mudar para a Europa e se tornar conhecido como fabricante de instrumentos de gelo. Trinta e seis anos depois, ele já criou centenas deles, além de 19 orquestras de gelo e 11 salas de concerto para música de gelo em estilo de iglus, desde Luleå, na Suécia, até os Alpes italianos.

Ao estudar e misturar materiais de forma intrincada — como gelo transparente caseiro e água carbonatada, além de neve solta de montanhas — Linhart consegue produzir instrumentos, como violinos, e afiná-los até o mais próximo da perfeição que a natureza permite. É um processo que ele chama de “icemanship” (um trocadilho com craftsmanship, que significa “habilidade manual”, geralmente relacionada a artesanato).


Estudantes de design da Universidade de Bergen ajudam a construir o local para o Festival de Música de Gelo da Noruega 2020.


Um escultor de gelo construindo um instrumento para o festival.

Anos como escultor de gelo o ajudaram a aprender os pontos estruturais fortes e fracos do instrumento. “Quando você se aproxima do ponto de ruptura entre a tensão da corda e a espessura do material, é ali que a música realmente acontece”, explica Linhart, que aperfeiçoou sua habilidade por meio de tentativa, erro e alguns instrumentos arrebentados.

Agora, morando na Itália, ele constrói instrumentos de gelo que são usados em orquestras que tocam gêneros que vão do rock-and-roll à música clássica, em um teatro-iglu no topo da geleira Presena, no resort de esqui Pontedilegno-Tonale, a nordeste de Milão.

Esculpir os instrumentos costuma demorar de três dias a várias semanas. Tanto a coleta do gelo quanto sua qualidade dependem do clima. Assim como acontece com o vinho, alguns anos trazem produções excelentes, já em outros, o gelo não produz sons com tanta qualidade.

Atingindo as notas certas

Quando o show começa, surgem outras complicações. “O gelo está sempre em movimento; expandindo, contraindo e sublimando na atmosfera”, explica Linhart. “O calor dos corpos derrete os instrumentos. O público faz a temperatura subir com sua respiração. Os instrumentos precisam ser afinados de novo, de maneira diferente. Alguns caem vários tons, outros sobem.” Para atenuar isso, ele projeta salas de concerto em forma de cúpula que ventilam o calor para longe dos instrumentos.

Outro risco é que os lábios dos trompetistas podem grudar nos bocais de seus instrumentos. E na maioria das vezes, os músicos não podem praticar em suas delicadas ferramentas, então eles frequentemente fazem composições ao vivo e improvisam na frente do público.


Músicos de gelo se apresentam em uma sala de concertos em estilo iglu construída por Tim Linhart e sua esposa, Birgitta, em Beaver Creek, Colorado.

Essas composições também estão à mercê do gelo. “Eu acho os sons dos instrumentos de gelo tão fascinantes e especiais”, diz a musicista alemã Anna-Maria Hefele, que vem experimentando a harpa de gelo. Mas ela observa que o instrumento é limitado, já que não existem pedais ou alavancas para alterar a afinação durante a execução ou nos intervalos das apresentações.

Isso significa que outros instrumentos como o “gelofone” — uma mistura de um xilofone com uma marimba, que combina muito bem com a harpa — precisam ser afinados de forma diferente para evitar tocar concertos inteiros em um único tom.

Embora harpistas sejam conhecidos por tocar as cordas delicadamente para criar melodias etéreas, detalhes como a temperatura dos dedos do músico afetam os sons que a harpa de gelo produz. “É bom que um harpista tenha mãos quentes, para ser rápido e preciso ao tocar”, ressalta Hefele. “Se as mãos estão frias, os dedos ficam mais lentos do que o normal.”

A música de gelo possui inúmeros contratempos, mas muitos músicos a veem como uma oportunidade de aperfeiçoar suas habilidades e aumentar sua criatividade.

“Sempre gostei de novos desafios e de explorar diferentes tipos de música”, declara o contrabaixista sueco Viktor Reuter, que tocou no Festival de Música de Gelo da Noruega e participou de uma turnê pela Alemanha e China com Isungset. “Ao tocar um contrabaixo acústico de madeira, seu corpo está sempre em contato com o instrumento e você sente aquelas vibrações profundas.”

Reuter explica que com o gelo, que é mais denso e pesado, o baixo se torna um instrumento completamente diferente. As harmonias devem ser simplificadas e tocadas mais lentamente, o que exige improvisação e um estado de espírito renovado.

Compartilhando a música e uma mensagem

Produzir e manter os instrumentos, preparar os locais e atrair o público para a plateia gélida continuam a fazer da música de gelo um empreendimento desafiador. Mas, para esses músicos rebeldes, se adaptar aos imprevistos faz parte do trabalho.

Os artistas frequentemente precisam levar sua música diretamente ao público. Além de viajar para a China, Isungset e sua equipe realizam cerca de 70 concertos por ano em lugares que vão da Austrália e Japão até a Índia e os Estados Unidos, muitas vezes em salas de concerto fechadas e usando freezers de armazenamento para conservar os instrumentos em temperatura adequada. Enquanto isso, Linhart está trabalhando em uma proposta para incluir a música de gelo nas celebrações dos Jogos Olímpicos de 2026 na Itália.

Para Isungset, não se trata apenas da música. Ele também está fazendo uma declaração ambiental. Em parceria com o Centro de Pesquisa Climática Bjerknes, com sede em Bergen, o Festival de Música de Gelo da Noruega apresenta discussões e exposições de arte que chamam a atenção sobre os efeitos das mudanças climáticas na neve e no gelo.

“O mais importante para nós é a expressão artística abstrata”, explica Isungset. “Em vez de dizer às pessoas o que não devem fazer, compartilhamos nossa mensagem de forma sutil.” O evento em si imita metaforicamente o aquecimento global, derretendo conforme a temperatura sobe depois que o público vai embora.


Afinal, conclui Isungset, “a música de gelo não é um projeto humano, mas algo totalmente dirigido pela natureza”.

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