Como naquela pré-história ainda não existia computador, ela me mandou uma carta. Uma carta desesperada, lágrimas pontuando a muy elegante caligrafia. O marido a abandonara por outra mais jovem. O filme é conhecido. Convidei-a para passar uns dias no meu apartamento de Cascais.
Cada manhã saía de seus aposentos devidamente perfumada, vestida de musselinas e babados, cabelo encaracolado e arrumadinho, saltos altos e maquiada para eventual festa. “Qual é o programa, hoje?”. Assim começava, rigorosamente, seu bom dia. Cada manhã eu tinha que inventar algo novo para seu bel-prazer. Os portugueses, na sua imensa sabedoria, afirmam que convidados são como as sardinhas; passando três dias, começam a cheirar mal. Após uma semana tê-la-ia estrangulado, sem remorso. Ela ficou duas semanas.Não a matei.
Você aceitou convite para uma temporada em casa amiga? Logo na chegada, se não foi definido antes, anuncie, em forma de interrogação, quantos dias pensa ficar. E não esqueça: melhor sair deixando saudades que alívio. Não dispense aqueles pequenos presentes que vão provar que você não veio para economizar hotel e participe desde o segundo dia das compras no supermercado. Convidar os anfitriões para jantar fora também não é má ideia. Caso não houver serviço, arrume cuidadosamente seu quarto e não hesite em lavar a louça após o jantar. Proponha molhar as plantas do jardim ou da varanda. Durante o dia se faça invisível. Cem museus, vinte catedrais lhe estão esperando. Volte de suas excursões com flores, livro ou torta. E se houver serviço, não esqueça deixar no momento da despedida uma generosa gorjeta a cada empregado, na justa proporção de sua importância na hierarquia doméstica. Afinal você deu sobrecarga de trabalho.
Ele veio com a amante. Linda, deslumbrante, vulcânica. Brigavam desde o despertar até o amanhecer. Vinham me fazer confidências totalmente escusadas, cada um por sua vez. E eu, o que é que tenho a ver com isso? O suíço passava o resto do tempo telefonando a Genebra – por celular, graças a Deus – para tratar de negócios.
Ela aos prantos, ele vermelho de raiva, deixaram o quarto imundo e a garrafa de whisky vazia. O mercibeaucoup foi rápido e ríspido. Até parecia que eu era o responsável. Nunca mandaram carta de agradecimento. Na verdade quem deveria ter mandado carta era eu, pelo prazer de vê-los desaparecendo para sempre de minha vida.
Como todos os casadinhos, tem momento em que qualquer palavra fere, qualquer elogio suscita desconforto, qualquer silêncio é interpretado como recusa ao convívio. Analistas existem para estes casos. Mas, por favor, me poupe de servir de capacho a suas desavenças matrimoniais. Não se lava roupa em casa alheia. Smile, allways smile. Estou certo de que alguma Betty Davis deve ter dito isso em algum filme de terror.
Mas nada se compara com aquele parisiense arquiteto de interior que vinha a trabalho duas ou três vezes por mês, usando de minha hospitalidade com alegria contagiante. Sempre trazia lembrança. Coisa de poucas petecas, simples forma de dizer “Lembrei de você” Geralmente de última hora, no aeroporto de embarque. Enchi uma gaveta, enchi duas, enchi um armário destas inúteis bugigangas. Do livro passou a revista, da revista ao cordel, do cordel ao cartão postal. Do foie-gras, passou ao patê de campagne, depois partiu para chocolates da Nestlé e nos últimos tempos, trazia saquinhos de balas de gengibre. Para ajudar nos gastos da casa, nunca fora capaz de comprar nem um pacote de café ou um rolo de papel higiênico e Deus sabe o quanto ele usava deste essencial desenrolar cheiroso. Quilômetros!
Após anos de abuso, enchi minha paciência. Mandei carta desaforada com aviso de recepção. Me telefonou, muito magoado. Conseguira inverter a situação, tornando-se vítima de meu destempero. Nunca devolveu a chave.
Dimitri Ganzelevitch
Salvador, 29 de janeiro de 2010.
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