quinta-feira, 17 de março de 2022

O NOME MUDOU, MAS...

 ... A MENTALIDADE É A MESMA DE SEMPRE

  

PARQUE DE PITUAÇÃU

ODEBRECHT NÃO PAGOU POR TERRENO ONDE CONSTRUIU MEGA COMDOMÍNIO


Detalhe do condomínio “Parque Tropical”, erguido pela Odebrecht em área do Parque de Pituaçu

 Albenísio Fonseca

Maior reserva ecológica de Salvador – e com remanescentes da Mata Atlântica em seus 453 hectares – o Parque Metropolitano de Pituaçu, no coração da orla oceânica da capital, está “em fase de estudos de viabilidade técnica” para ser concedido à iniciativa privada pelo governo do Estado. Originalmente, vale dizer, em 1973, quando da inauguração pelo governador Roberto Santos (PMDB), a área dispunha de 660 ha. A redução da poligonal foi efetuada no final da administração Paulo Souto (então no PFL), em 2006, a exatos 15 dias de entregar o cargo. 

Último dos equipamentos públicos da cidade a ser reaberto para visitação pública, em decorrência das restrições sanitárias provocadas pela Covid-19, o parque tem ambiência paradisíaca, mas vive cercado de problemas por todos os lados. As maiores ameaças em Pituaçu envolvem poluição das águas da lagoa e do rio de mesmo nome – com estimativa de, “ao menos, 35 mil pontos de lançamento de esgotos”, impedindo a pesca e o banho para frequentadores – além da questão fundiária em áreas sob ocupações irregulares.

A duplicação da avenida Pinto de Aguiar e a construção da avenida Gal Costa, em limites do parque, geraram impactos como assoreamento e tamponamento de trechos do rio Pituaçu, além da canalização da água pluvial para o parque. Estimativas de revitalização do rio alcançavam R$ 36 milhões, há seis anos. Uma estação de tratamento de esgoto, instalada sob estação do metrô na avenida Paralela, já não atende à capacidade e tem transbordado, atingindo o rio que alimenta a lagoa.

A Embasa-Empresa de Água e Saneamento da Bahia, em Nota Técnica datada do último dia 7 de fevereiro, garante “não ser possível estimar os custos reais para retirada das plantas aquáticas, em função de não conseguir identificar área próxima para disposição da biomassa úmida” que, por visível má gestão do parque, “tem 50% do espelho d’água da Represa de Pituaçu recoberto por plantas da família macrófitas”. Ainda em fevereiro, o esgoto em que foi convertido o rio arrebentou trecho da ciclovia que circunda o parque metropolitano, surpreendendo ciclistas.

A represa que permitiu a formação da lagoa foi construída em 1906 pelo engenheiro Teodoro Sampaio. O propósito era criar um manancial de abastecimento para a capital baiana, o que de fato ocorreu, alcançando até o bairro do Rio Vermelho em meados dos anos 70.

Odebrecht comprou e não pagou

Como se não bastassem as “demandas naturais”, veio à tona denúncia sobre a venda de terrenos, subtraídos da poligonal, em medidas que reduziram a área do parque em milhares de metros quadrados. Foram comercializados pelo governo da Bahia, na gestão de Jaques Wagner (PT), com valores discrepantes, 3 mil m², à Sanave, por R$ 9 milhões; e outros 26 mil m², à OR-Odebrecht Realizações Imobiliárias, por R$ 10 milhões. Wagner anunciou, recentemente, a decisão de não concorrer a um terceiro mandato para governar o estado, transtornando o processo sucessório local.

A denúncia, de estarrecer, é a de que o Grupo Odebrecht (que mudou o nome para Novonor) até esta data não efetuou o pagamento do montante, embora tenha consolidado no terreno a construção de um mega condomínio com oito torres, divididas em três subcondomínios, com 11 mil m² de área verde e 34 m acima do nível do mar, desde 2012 e à revelia do poder público. Os apartamentos, de 3 e 4 suítes, medem, respectivamente, 113 m² e 155 m².  À época, foram comercializados por cerca de R$ 800 mil, o mais barato, e até R$ 3 milhões, as coberturas.

Após 15 dias, em meio a joguetes de uma secretaria para outras e sob “silêncio tumular” do Inema-Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos, órgão responsável pela administração do parque ambiental, finalmente a PGE-Procuradoria Geral do Estado, após várias negativas, através da procuradora-Geral Adjunta, Bárbara Camardelli, admitiu que “a empresa Odebrecht não pagou e não compareceu à celebração de pré-acordo destinado a solucionar o pagamento da área”.  Camardelli acrescentou que “medidas adequadas se encontram em elaboração para a devida recomposição do patrimônio público, inclusive com ajuste dos valores”. A procuradora deixou claro que “a PGE ainda não moveu ação contra a empresa”. Ela considerou “uma coincidência, justo nesse momento que preparamos a ação judicial”, a abordagem da reportagem sobre o calote aplicado pela Odebrecht.

Camardelli se recusou a adiantar qualquer outra informação, até mesmo a data constante no “pré-acordo”, sob alegação de que “qualquer alusão ao conteúdo da peça pode comprometer a defesa”. De todo modo, estipulou que “até segunda-feira (21) já teremos dado entrada na ação junto ao Tribunal de Justiça da Bahia”. Assegurou, também, que “a medida exigiu contratação de empresa privada que já procedeu a avaliação pericial sobre o terreno, objeto da questão”.  Salientou, ainda, que “para consolidar a venda foi necessário alterar a legislação através da Assembleia Legislativa”. Sem outro recurso, a PGE reconhece, do mesmo modo, a “existência de diversas ações movidas quanto a particulares em ocupações ilegais”.

Do outro lado, os telefones de contato da OR permanecem “em caixa”, não são atendidos ou não concluem a ligação.  A propósito, o condomínio “Parque Tropical”, como passou a ser denominado, tem área maior que a estimada na “venda” pelo governo da Bahia. Enquanto o Estado menciona 26 mil m², a empresa “comercializa o paraíso” em 32 mil m², como se diria de um, ainda mais gracioso, bônus de 6 mil m². 

Entrada do Parque Tropical, nome adotado pela Odebrecht após reação de tropicalistas

Reação dos tropicalistas

Primeira subsidiária do grupo a mudar de nome, dentro da estratégia de desvincular a imagem dos processos e condenações impingidos pela Operação Lava-jato, a OR-Odebrecht Realizações Imobiliárias teve que alterar, também, o nome inicial do empreendimento – “Tropicália” – após os cantores e compositores Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, ícones do Tropicalismo, rejeitarem a homenagem e, sem acordo, recorrerem à Justiça.

Os prédios também seriam denominados com alusões a canções dos tropicalistas, como “Alegria alegria”, “Divino maravilhoso” e outras.  Como enfatizaria, então, a advogada de Veloso, Simone Kamenetz, “ferindo princípios dos artistas em não comercializarem suas criações para efeito de marketing de produtos”.

Apropriação indébita e transparência à parte

No último sábado (5.03) venceu o prazo de 10 dias determinado pela Justiça para que a família de Eliete Magalhães (viúva de José Magalhães, irmão do também já falecido ex-governador Antônio Carlos Magalhães) entregasse um amplo terreno no Alto do Andu, em território do parque, por apropriação indébita, em vitória judicial do governo baiano. Já um Grupo Técnico criado na Casa Civil para desenvolver soluções às posses irregulares limitou-se à única ação de consolidar invasão de moradores na Vila Nicuri, impedindo novas ocupações. Com um primor de transparência, a Casa Civil nega a existência do GT.

Outras áreas da reserva ambiental também foram vendidas pelo governo na segunda gestão do petista. À Queiroz Galvão, que construiu o condomínio “Hemisphere 360º” com 12 torres de 3 e 4 suítes, em 40 mil m², com frente para o parque e vista-mar, sem que fosse possível identificar o valor obtido pelo governo na transação. Do mesmo modo, mas sem que se disponha da delimitação de área, vendeu, ainda, terreno já devastado pela  Delta Engenharia, por R$ 20 milhões, e a empresa, agora, até especula devolver o espaço ao patrimônio público, mas “por R$170 milhões”.

Alberto Peixoto, coordenador de Articulação Comunitária, sob o pórtico do novo atrativo do parque

Trilha Sensorial, novo atrativo

Na contramão da iniciativa de privatização do equipamento pelo governo Rui Costa, um dos responsáveis pela administração do parque, José Alberto Peixoto, coordenador de Articulação Comunitária, comemorava “um sonho de 10 anos” ao nos fazer percorrer os 800 m do mais novo atrativo do equipamento de lazer, a “Trilha Sensorial”.

Destinada a crianças e jovens, e construída em terreno ocioso na margem da lagoa, em frente ao bicicletário que, vale frisar, segue desativado desde o início da pandemia, em 2020, por conta das restrições sanitárias. Na trilha, se atravessa diversos tipos de solo (terra, barro, areia, pedras), podendo identificar árvores frutíferas e outras plantas, cujos nomes estão exibidos em placas de madeira. A pequena mata permite o prazer da contemplação imerso na natureza, e um novo desejo de Peixoto está confirmado: inserir um anfiteatro no local. Os recursos provêm de multa aplicada ao Senai Cimatec por prédio construído em área do parque.


Há, ainda pendentes, R$ 15 milhões destinados, em 2013, por Jaques Wagner, em Ordem de Serviço, para recuperação da ciclovia de 15 km e cercamento de toda a área do parque, mas a intervenção ficou restrita à construção de uma pista de acessibilidade à lagoa. A obra sequer foi concluída para contemplar cadeirantes.

Além da fauna e flora diversas, de obras do artista Mário Cravo Jr., e do bairro no entorno, o parque abriga diversos equipamentos, sem dispor, contudo, de contrapartidas. São os casos do Museu de Ciência e Tecnologia, do Estádio Roberto Santos, Cetra-Centro Especial de Tratamento de Animais Silvestres, Coppa-Companhia de Polícia de Proteção Ambiental, Polícia Especial de Eventos e unidades da UCSal-Universidade Católica de Salvador. A segurança do parque é feita por empresa privada. O pórtico de entrada, onde Cravo exibia esculturas de “Cristo crucificado” e a oficina do artista estão relegados ao descaso e a estrutura de concreto, no caso do pórtico, sem manutenção e sob desgaste da ação do salitre. O custo de manutenção mensal do equipamento é estimado em R$ 300 mil.

Governo da Bahia que conceder
cinco parques à iniciativa privada

O Governo da Bahia aderiu ao Programa de Concessão de Parques Naturais do Governo Federal, visando conceder à iniciativa privada cinco Parques Estaduais: Zoobotânico, Pituaçu e São Bartolomeu, em Salvador, além de Conduru e Sete Passagens no interior do Estado. O Programa conta com financiamento do BNDES que, contratado pelo Estado da Bahia, subcontrata empresas para realizar a modelagem econômica do processo de concessão e seus respectivos editais de licitação.

Os Parques Zoobotânico, Conduru e Sete Passagens já tiveram Consultas Públicas realizadas de forma remota, sob veementes protestos das respectivas comunidades do entorno e também da sociedade civil organizada das cidades onde se situam: Salvador, Ilhéus e Miguel Calmon. Fundamentada em aspectos legais da Constituição Federal, acordos internacionais firmados pelo Brasil e na própria Política Ambiental do Estado da Bahia, a comunidade de Miguel Calmon entrou com Ação Civil Pública no Ministério Público da Bahia solicitando a anulação do processo de concessão do Parque das Sete Passagens.



Audiência Pública está prevista para dia 24

Em Pituaçu não é diferente. “Apesar de ainda não ter sua modelagem econômica concluída, segundo informações da SEMA – Secretaria de Meio Ambiente do Estado da Bahia para realização da Consulta Pública, a comunidade, grupos organizados e o Conselho Gestor do Parque já se mobilizam no sentido de não permitir o avanço dessa estratégia privatista do governador Rui Costa”, diz o conselheiro Paulo Canário. Segundo ele, “uma Audiência Pública conduzida pela Frente Parlamentar Ambientalista da Bahia, na Assembleia Legislativa do Estado, está prevista para o próximo dia 24, de forma a estabelecer uma escuta ativa e apoiar o movimento da comunidade contrária à concessão”.

Conforme Canário, “diversos estudos, pesquisas, rodas de conversas com especialistas, contatos com outras Unidades de Conservação já concedidas, debates no âmbito do Conselho Gestor do Parque com a SEMA e o INEMA, inclusive não aceitando interlocução com os técnicos do BNDES, já foram realizados como forma de levar conhecimentos e esclarecimentos à comunidade do entorno do Parque de Pituaçu”.


As alegações da comunidade

Entre os motivos que levam a comunidade a “rechaçar, veementemente, a concessão”, Canário menciona “a possibilidade real da cobrança para acesso ao parque, hoje gratuito; perda do espaço e de renda na comercialização de diversos produtos hoje vendidos na área do Parque; impedimento para desenvolver atividades culturais, artísticas, educacionais (inclusive ambientais) e de lazer no local, hoje oferecidas gratuitamente à comunidade e à população de Salvador.

O conselheiro cita, ainda, a “proibição do uso pelas religiões de matrizes africanas que cultuam sua ancestralidade e fé na área do parque; impossibilidade de uso para subsistência por parte de algumas pessoas da comunidade pela retirada de frutas nativas e peixes da lagoa; perda de cobertura vegetal original da Mata Atlântica devido a usos indevidos e construções no âmbito da poligonal (facilitadas por um licenciamento ambiental flexível para o investidor); perda de identidade da comunidade com o parque, vinculado à formação das famílias das comunidades do seu entorno; gourmetização do espaço público, natural, com relativo estágio de preservação da sua biodiversidade, mas sob  contribuição negativa para a mudança do clima hoje já sentida na cidade”. 

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Jornalista, editor-executivo da Editora Boa Ideia e autor de “Jornalismo Cultural em Transe – Épocas em Cena” (2017) – albenisio@gmail.com

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