Desmonte da cidade portuária: o potencial marítimo em Salvador
Em 1972, Caetano Veloso anuncia na canção Triste Bahia que “o vapor de Cachoeira já não navega mais no mar”. De fato, somos uma geração que desconhece a capacidade náutica de Salvador, uma vez que a maioria não teve a oportunidade de conviver com o cotidiano da cidade portuária. Um breve olhar nos registros realizados por fotógrafos como Marcel Gautherot, Pierre Verger e Lázaro Roberto, entre as décadas de 1950 a 1970, permite verificar que as dinâmicas cotidianas realizadas junto ao mar eram abissalmente diferentes das atuais.
Até a década de 1970, embarcações dos mais diversos portes cruzavam as águas da Baía de Todos os Santos, transportando pessoas e produtos. Contudo, essa dinâmica foi paulatinamente desmontada, com a ativa participação do próprio Estado — sobretudo com os barcos de pequeno porte. Em 1973, os saveiros, embarcações tradicionais do Recôncavo baiano, são impedidos de ancorar nos atracadouros e portos de Salvador. Essa conduta é o desdobramento prático do projeto de desenvolvimento que privilegia o sistema rodoviário, mobilizado de formas distintas em todo território nacional ao longo do século XX.
A capacidade náutica subutilizada de Salvador não condiz com as boas condições de navegabilidade da Baía de Todos os Santos — condição observada pelos colonizadores portugueses quando instituíram o assentamento humano do Governo Geral para o Brasil em 1548. As instruções da Coroa Portuguesa (indicadas no Regimento de Tomé de Souza) orientam para a fundação da colônia em local adequado, desde que garantindo uma posição estratégica para a salvaguarda do território, mas também facilidades portuárias.
Portanto, desde a sua origem, Salvador se estabelece enquanto uma cidade portuária, seja pelas condições naturais para as embarcações atracarem, seja por se constituir como um importante entreposto do comércio ultramarino. Com os avanços tecnológicos do século XIX (complexificação do aparelho estatal burocrático, desenvolvimento técnico das embarcações, entre outros), a viação aquática se consolida e complexifica com apoio de diversos fatores, entre eles o incentivo estatal.
Na segunda metade oitocentista, a navegação a vapor realizava diversos trajetos provenientes da capital baiana, seja para outros estados, seja dentro do próprio Recôncavo. Havia, ainda, itinerários realizados na própria cidade: em 1865, a Companhia de Navegação Bahiana de Navegação a Vapor desenvolve uma linha da navegação de cabotagem de Itapagipe à Barra (Barra, Jiquitaia, Água de Meninos, Roma, Bonfim, Itapagipe), ampliando, em 1873, até São Tomé de Paripe e Boca do Rio.
As embarcações de menor porte também se valiam das boas condições de navegabilidade das águas da baía, contribuindo intensamente nas dinâmicas sociais e econômicas cotidianas que abasteciam Salvador. Pelo mar, os saveiros transportavam toda uma gama de gêneros alimentícios e outros insumos provenientes do Recôncavo e demais regiões da Bahia. Nos atracadouros e nas rampas do litoral soteropolitano, a carga e descarga das embarcações constituiu, em algumas localidades, feiras livres.
Contudo, a partir da segunda metade do século XX, um determinado ideal desenvolvimentista se fortalece, calcado no imaginário moderno civilizatório que privilegia o sistema rodoviário. A expressão material dessa ideia ocorre não somente pela expansão das estradas de rodagem, mas também pelo desmonte dos demais sistemas de circulação e distribuição. No caso fluvial-marítimo, a expressão radical se manifesta na proibição da atracação das embarcações do Recôncavo baiano, conforme já mencionado.
Enquanto no século XIX, a navegação pareceu viver seu apogeu, no século conseguinte a mobilidade marítima enfrenta o seu desmonte. A partir dos anos 2000, o potencial de navegabilidade da Baía de Todos os Santos ressurge esporadicamente na esfera pública enquanto projetos urbanos voltados para o circuito turístico. Citamos o programa da Via Náutica — formulado na gestão de Antônio Imbassahy (1997-2005) em parceria com o governo do Estado da Bahia — que teve o seu primeiro (e único) equipamento construído em 2000 na Ponta de Humaitá. Os demais atracadouros não foram construídos, e o sistema nunca foi implementado.
Ainda que permaneçam alguns circuitos de transporte náutico em Salvador (como o ferryboat ou a travessia de lancha entre Salvador-Mar Grande, para a Ilha de Itaparica; ou mesmo dentro do município de Salvador, com a Travessia Ribeira-Plataforma e Travessia Paripe-Ilha de Maré), observa-se o contínuo descaso com a mobilidade marítima — sem mencionar as demais dinâmicas realizadas junto ao mar, como a pesca e mariscagem. Não obstante, assistimos diariamente à permanência do privilégio do sistema rodoviário, conforme avançam as negociações e deliberações para a construção da Ponte Salvador-Itaparica.
De fato, vivemos em uma triste baía. Os versos de Caetano Veloso anunciam o resultado do processo de desmonte do sistema fluvial do Recôncavo baiano. Quando a discussão sobre mobilidade marítima surge, é pautada na chave do turismo, ignorando a qualidade de navegabilidade do seu litoral. Em uma cidade como Salvador, com uma baía de grande potencial náutico, é lamentável ainda desconsiderar novas formas de mobilidade, bem como aqueles que produzem suas vidas, seus cotidianos, junto ao mar.
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