A beleza das águas e o atraso de uma nação
A poesia não se restringe à literatura, é a própria essência de todas as artes. O pintor Claude Monet pode ser considerado o poeta das águas. Deu cor às aguadas e às ninféias flutuantes. Burle Marx criou espelhos d´águas semelhantes aos de Monet, em belos jardins nas nossas cidades cinzentas. O poeta Manoel de Barros cantou as águas do Pantanal Mato-Grossense.
Em Salvador os nossos rios viraram cloacas e foram enterrados. Quando chove os rios explodem nos bueiros e bocas-de-lobo e inunda tudo. Em outras cidades os rios transbordam e levam casas e móveis dos mais pobres. Isso acontece todo ano e cada vez com mais força. Muitos dizem que é inevitável, são as mudanças climáticas.
Os urbanistas dizem que é falta de planejamento. Mas um colega chinês vai mais além, diz que temos que conviver com as águas, que é possível domá-las e transformá-las em paisagens belas. Ele se chama, ou melhor, se chamava, Kongjian Yu. Modesto e risonho dizia que não inventou nada, apenas seguia a tradição milenar chinesa, com campos recobertos por uma lâmina d’água de 30 cm onde se plantava arroz e se criava peixes, com pequenas represas escalonadas e pedras emergentes para cruzá-las sem molhar os pés. Um sistema semelhante ao da irrigação da quínoa nos “andenes”, como fazem os tiahuanacos, incas, quéchuas e aymaras nos Andes há 2.000 anos. O Ocidente civilizado continua ambientalmente na pré-história.
Kongjian Yu pregava que era preciso desimpermeabilizar o solo urbano retirando o concreto que ele odiava e o asfalto para criar o que ele chamava a Cidade Esponja e alimentar os aquíferos, reservatórios naturais no subsolo para os períodos de seca. Uma solução ecológica e resiliente que já vem sendo adotada em muitos países asiáticos. Kongjian Yu veio algumas vezes ao Brasil e dizia que para controlar as inundações nas nossas cidades era preciso começar pelo campo.
Ele estendeu o conceito de Cidade Esponja para Planeta Esponja visando a restauração ecológica de pântanos, rios e zonas costeiras e recuperar e estabilizar o ciclo global das águas. Doutor por Harvard, defendeu suas ideias em 20 livros e mais de 300 artigos acadêmicos. Voltou recentemente ao país para participar da 14ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo e rever o Pantanal Mato-Grossense que tanto amava.
Morreu aos 62 anos no último dia 24 de setembro num voo cego noturno em um calhambeque voador de 68 anos de idade, numa fazenda chamada Barra Mansa, em Aquidauana, Mato Grosso, onde foi filmada a novela Pantanal. Imaginem um aeroplano do século passado com 68 anos de uso!
Meus pêsames à família, amigos e admiradores do paisagista e poeta Kongjian Yu e demais famílias vítimas daquele voo temerário. Neste momento sinto um vazio e vergonha de ser brasileiro.
SSA: A Tarde, 12/10/2025

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