segunda-feira, 2 de abril de 2018

A QUEDA DO IMPÉRIO

A queda do império

Trinta anos separam a escrita dos dois romances reunidos agora neste livro. Um deles, Ualalapi, foi considerado um dos mais importantes romances africanos de sempre.

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Ungulani Ba Ka Khosa — que é historiador de formação — recorre à História para apoiar uma narrativa ficcionada
Este livro, com o título genérico Gungunhana, reúne dois textos (romances) do escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa (n. 1957) — nome tsonga de Francisco Esaú Cossa: o seu livro de estreia, Ualalapi (originalmente publicado em 1987), e um outro texto, até agora inédito, As Mulheres do Imperador; o primeiro narra a ascensão e queda de Gungunhana, o último imperador de Gaza, que subiu ao poder depois de Ualalapi, um guerreiro nguni, ter matado Mafenane, irmão do futuro imperador e também pretendente ao trono, após a morte do pai; o segundo texto é a narração ficcionada das vidas das mulheres do imperador, regressadas a Moçambique depois de terem passado década e meia num exílio forçado em São Tomé.
Trinta anos separam a escrita destes dois romances, e é curioso notar como o modo narrativo se parece ter adestrado a uma outra maneira de contar, mais corrente na escrita, menos poética e aforística, afastando-se da tradição oral africana dos contadores de histórias (que era bem visível em Ualalapi, em parte devedor de Quando Tudo Se Desmorona – considerado o romance seminal africano – do nigeriano Chinua Achebe), mas nunca perdendo a concisão narrativa e a assertividade clarividente que caracterizam o primeiro.
Ungulani Ba Ka Khosa — que é historiador de formação — recorre à História (mas não só, também, por exemplo, à etnografia) para apoiar uma narrativa ficcionada. Começou por fazê-lo no seu romance de estreia, Ualalapi — considerado por muitos como um dos mais importantes romances africanos de sempre — ao retratar, numa espécie de “contos contínuos” (quase poderão ser lidos de maneira independente), o declínio e a queda do império de Gaza com base na figura histórica do imperador Ngungunhane (a quem os portugueses chamaram Gungunhana). É uma “metaficção historiográfica”, disseram alguns. Numa escrita veloz, por vezes bastante violenta e crua, perpassada de aforismos (sobretudo nos diálogos sábios e na voz das mulheres), Ba Ka Khosa intertextualizou fragmentos de documentação histórica coeva (relatórios dos governadores da província de Moçambique, livros de memórias, discursos oficiais) com uma narrativa ficcional que procura o suporte na tradição oral, para desmitificar um herói nacional descrevendo-o como um homem cruel, violento e sanguinário.Ualalapi vai-se construindo como um painel de mosaicos, ou como um jogo de luz num vitral que a filtra e a oferece em diferentes cores, cabendo ao leitor o lento processo da reconstituição da narrativa.
O recurso à História caracteriza parte da obra do escritor moçambicano que, também em Choriro (Sextante, 2015), narra a história de um rei branco no Vale do Zambeze na segunda metade do século XIX, de seu nome Luís António Gregódio; neste romance, esse uso de materiais narrativos (embora existindo) não é posto de maneira tão evidente. O mesmo já não acontece em As Mulheres do Imperador, em que a figura histórica de Mouzinho de Albuquerque, “responsável directo pela queda do império” de Gaza, surge apenas evocado por referências a documentos.
O aparente conflito entre a História (olhada nos livros de Ba Ka Khosa como uma versão de uma certa verdade oficializada) e a tradição oral, conflito entre a escrita e a fala que perpetua o passado, ambas com a função de passarem o testemunho, parece ser o motor que impele as narrativas e a procura de uma outra ‘verdade’ histórica. Se isto já era evidente em Ualalapi e em Choriro, é-o talvez ainda mais em As Mulheres do Imperador. Neste último texto o leitor acompanha a vida presente (também parte da que foi passada no exílio santomense) de quatro das sete mulheres que foram presas com Gungunhana por Mouzinho de Albuquerque (então governador militar da província de Moçambique), enviadas com o imperador para Lisboa, e depois apartadas deste (que seguiu para a ilha Terceira, onde viria a morrer) e mandadas para São Tomé.
Ao mesmo tempo que decorre o contar das vidas dessas mulheres, o narrador vai tecendo várias considerações sobre a história colonialista em Moçambique, como, por exemplo, a comparação que faz sobre o colonialismo inglês na África do Sul e o português naquela sua província no que diz respeito à língua. Depois há ainda uma leitura social do facto de a monarquia nguni não despertar “simpatia nem saudade” entre a população indígena, o que justifica o anonimato em que as mulheres de Gungunhana (rainhas legítimas) regressaram, em 1911, a Lourenço Marques. “Elas não eram notícia. Não existiam. Foram elididas da memória. Em parte, o facto explicava-se, segundo o governador [civil], pelo teor do artigo (…) num dos jornais d’O Africano, datado de 1909, sobre o Ngungunhane”, que o apresentava como uma facínora.
Ao ficcionar a História, da maneira que o faz, apoiando-se em fragmentos de documentos coevos, Ba Ka Khosa abre outras possibilidades de leitura a partir de ângulos obscuros, tornando isto como uma das funções das suas narrativas.


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