Lixo e luxo nos 500 anos
da fundação de Havana
Primeira visita de Estado de um monarca
espanhol a Cuba marca o aniversário da
capital fundada em 1519. Comemorações
chegam no meio de uma crise de lixo e
restrições nas remessas de divisas
Cada alta figura presente nas cerimónias de comemoração dos 500 anos
de fundação da cidade de Havana
receberá uma garrafa de um rum criado pela Havana Club propositadamente para a ocasião. A empresa
reservou 65 garrafas da edição limitada de 500 unidades para a ocasião
— das restantes, 300 serão para vender, mas a 2800 pesos convertíveis
cada garrafa, mais de 2500 euros,
está fora do alcance da grande maioria dos cubanos, cujo salário médio
mensal ronda os 28 euros.
Não se sabe se a marca de rum, que
em 2018 exportou 4,6 milhões de caixas para 120 países, entregou uma das
garrafas ao rei Felipe VI de Espanha,
que esta semana efectuou a primeira
visita de Estado de um monarca espanhol a Cuba desde a independência
da ilha em 1898. O casal real espanhol
não participa nas cerimónias oÆciais
do aniversário de San Cristóbal de la
Habana, que começam hoje, para não
partilhar a tribuna de honra com os
presidentes da Venezuela, Nicolás
Maduro, e Nicarágua, Daniel Ortega.
Felipe VI entregou no ano passado
um prémio jornalístico ao cubano
Julio Batista, na categoria de jornalismo ambiental e desenvolvimento
sustentável, por uma reportagem de
denúncia da contaminação das águas
da enseada de Chipriona, na capital
cubana, pela Havana Club International. “Em muitos aspectos, Chipriona fede a morte”, escrevia então
Batista na reportagem publicada no
site Periodismo de Barrio, um dos
meios de comunicação independentes que vão oferecendo jornalismo
alternativo aos órgãos oficiais no
interior de Cuba. Batista foi um dos
três jornalistas que o rei de Espanha
fez questão de convidar para o seu
encontro com membros da sociedade civil na Embaixada de Espanha,
ontem em Havana.
Ainda este mês, a ONU colocava
Cuba a vermelho entre os países que
não cumprem o Acordo de Paris
sobre acções para travar as alterações
climáticas e um dos aspectos negativos referidos é a grande concentração
de indústrias tecnologicamente obsoletas junto a localidades, despejando
nos aquíferos esgotos por tratar ou
insuficientemente tratados.
A cidade de Havana enfrenta uma
grave crise de lixo que ajuda a contribuir para que a dengue se transforme
em doença endémica. O aglomerado
urbano de 2,1 milhões de habitantes
gera 23.814 metros cúbicos de lixo por
dia, quantidade que torna difícil o
trabalho do sistema de recolha, quando muitos camiões estão parados por
avaria ou falta de combustível.
No princípio do mês chegaram ao
Porto de Havana dez camiões doados
pela Câmara de Viena — que já no ano
passado tinha feito doação idêntica
— que serão usados, como disse ao
Cubadebate o director dos serviços
de comunicação da cidade, Onelio
Ojeda, para a recolha de resíduos nos
hospitais, para contractos com grandes centros industriais e para o reforço de alguns dos eixos viários da cidade. Esta doação austríaca junta-se a
outras já concretizadas do Japão (48)
e por cumprir da China (61), o que
permitirá aumentar a frota de
camiões do lixo. Segundo disse ao
mesmo site Reinier Arias, vice-director da empresa provincial de serviços municipais de Havana, com
estes meios está garantida a recolha
de 90% do lixo gerado todos os dias.
No meio da falta
de combustível,
a cidade debate-se
com uma crise
de recolha de lixo
que está a ajudar
a propagar a febre
de dengue
na capital cubana
Crise energética
Porém, mais do que um problema de
meios, o lixo em Havana está relacionado com a crise energética no país.
Omín Camejo, vice-presidente do
governo municipal, anunciava, no
Ænal de Setembro, a redução da frequência da recolha de lixo devido à
falta de combustível para os camiões.
“DeÆniu-se, por isso, novos horários
de recolha para a população, às
segundas, quartas e sextas, a partir
das sete da noite”, explicou.A pressão dos Estados Unidos aos
navios com petróleo da Venezuela está a diminuir a disponibilidade
de gasóleo, obrigando o Governo a
restringir a sua distribuição. Com a
falta de combustível, reduz-se a frequência de recolha de lixo, com as
chuvas acumulam-se águas estagnadas na cidade e sem dinheiro para as
grandes campanhas de fumigação
cresceu a incidência da dengue, doença infecciosa transmitida pelo mosquito Aedes aegypti.
De acordo com o Havana Times,
vários hospitais estabeleceram alas separadas para tratar do aumento de
pacientes com sintomas de dengue.
As autoridades têm evitado a utilização do termo epidemia: “Apesar dos
problemas económicos que enfrentamos, tem havido um esforço enorme para assegurar todos os recursos
necessários para prevenir as condições que fomentam a proliferação do
Aedes aegypti e a transmissão da
febre de dengue”, dizia Dalsy Torres
Ávila, director do Hospital Universitário Manuel Fajardo.
“Toda a gente sabe que não importa a quantidade de campanhas e de acções que o Estado leve a cabo para
fazer desaparecer o principal factor
da febre de dengue, nunca conseguiremos erradicar esta praga se continuarmos a ter montes de lixo em
todas as esquinas”, escrevia Pedro P.
Morejón no mesmo jornal.
Relações com os EUA
A crise energética é uma das faces
do endurecimento da política dos
Estados Unidos em relação a Cuba
com a chegada de Donald Trump à
Casa Branca. Os avanços nas relações entre os dois países, conseguidos durante os mandatos de Barack
Obama, principalmente no seu final
— e que culminaram no restabelecimento dos laços diplomáticos entre
os dois países a 17 de Dezembro de
2014 — foram travados por esta
Administração.
Outro sinal do regresso à velha
política do embargo duro à ilha são
as longas filas de cubanos nas agências da Western Union. Uma parte
substancial dos cubanos depende
das remessas de divisas enviadas por
parentes que residem no exterior.
Em Outubro, o envio de dinheiro dos EUA para Cuba foi limitado a mil
dólares por trimestre.
Segundo o The Havana Consulting
Group, citado pelo jornal online 14 y
medio, “no período de 2009-2016 as
remessas cresceram 2000 milhões de
dólares em comparação com a etapa
anterior, no período de 1993 a 2008.
Em apenas oito anos, os usos prioritários das remessas passaram de seis
actividades para 14 [desde pagamento de alimentação até ao acesso à
Internet]”, de acordo com o presidente do grupo, Emilio Morales.
No grande mercado Carlos III, em
Havana, a fila para a Western Union
estende-se agora até à porta. Aquilo
que se fazia em poucos minutos tornou-se moroso, quer pelas restrições
norte-americanas, quer pela escassez
de divisas em Cuba. Os entraves ao
negócio também levaram ao encerramento de mais balcões de atendimento, assoberbando aqueles que ainda
funcionam. Os milhares de famílias
que recebem dinheiro de fora continuam a ser as mesmas, o processo é
que se tornou mais complicado.
No entanto, como dizem os cubanos, “a mau tempo, boa cara” e os
500 anos da fundação de Havana por
Pánfilo de Narváez em 1519 é ocasião
para comemorar a longa vida de uma
das jóias arquitectónicas do Atlântico,
apesar da sua degradação por falta de verbas para reabilitar os velhos casarões de traços coloniais.
A Havana Club
criou uma edição
limitada de rum
para comemorar
os 500 anos
de Havana. Cada
garrafa vai custar
mais de 2500
euros, quase 90
vezes o salário
médio cubano
A que se junta agora a incapacidade para recolher
o entulho dos que vão desabando,
sobretudo nesta época de chuvas.
“Hoje, Havana parece desgrenhada
e deteriorada, mas numa perspectiva
urbana permanece integral, o que a
torna um lugar excepcional para analisar, não só pela sua arquitectura,
mas pelos excepcionais e transversais
objectivos de planeamento variados
e intactos, incluindo aqueles que chegaram a ser prevalecentes por todas
as Caraíbas e todo o hemisfério”, dizia
Sonia Chao, professora da Faculdade
de Arquitectura da Universidade de
Miami, ao site da universidade.
Eusebio Leal Spengler, historiador
de Havana, que guiou os reis de Espanha na visita à cidade velha, diz ao
Correo de la UNESCO, que “as doenças” que Havana tem “são aquelas que
podem sentir alguém que viveu tanto
tempo”. Um dos maiores especialistas
da história da cidade, e que foi agora
condecorado por Felipe VI, explicou
aos monarcas espanhóis, durante
“um passeio intenso”, como vão as
obras de restauração dessa zona da
cidade que é património mundial desde 1982: “Havana é uma cidade viva,
de sabedoria e de memória”
Nenhum comentário:
Postar um comentário