sexta-feira, 15 de novembro de 2019

O GOLPE NA BOLÍVIA

O terceiro mandato de Evo Morales foi interrompido por um golpe, que se seguiu a um movimento de protesto e greves reunindo setores populares, de classe média e empresariais. A inquietação é provocada pelo resultado das eleições, que apontaram vitória do presidente no primeiro turno. A candidatura de Evo a um quarto mandato não tinha cobertura constitucional, havia sido negada em referendo por perto de 51% da população e se baseava em uma discutível interpretação da Corte Constitucional e do Tribunal Supremo Eleitoral. Segundo esta interpretação, a provisão constitucional do direito de votar e ser votado se sobreporia à limitação da reeleição a dois mandatos consecutivos. 
O terceiro mandato de Evo Morales se baseou no fato de que o primeiro foi interrompido, por força da nova Constituição e de eleições gerais, já com participação plena dos indígenas do altiplano e dos indígenas das terras baixas, onde o apoio a Morales, embora amplo, não era unânime. A vitória de Evo Morales, em 2005, seguida da mudança da constituição política, entre 2006 e 2008, e as eleições para o Legislativo, em 2005 e 2009, foram politicamente definidas pela participação da maioria da população indígena. Esta incorporação de amplos setores excluídos não se deu sem oposição, mas prevaleceu a vontade da maioria, com forte mobilização social (cívica).
Embora os governos de Evo Morales não tenham sido consensuais e, durante eles, tenha havido movimentos de rua e momentos de tensão social e política, marcaram quase 14 anos de estabilidade institucional e avanços sociais. A economia andou bem, houve redução da pobreza e das desigualdades, desenvolveu-se o sentimento de cidadania numa sociedade que sempre foi oligárquica. É preciso lembrar, que os dois antecessores de Evo Morales, Gonzalo Sánchez de Lozada e Carlos Mesa, também tiveram seus mandatos interrompidos por renúncias forçadas. Apesar da estabilidade político-institucional e do progresso social, nem o racismo, nem a divisão étnica da sociedade foram superados.
 O erro de Evo Morales foi não ter construído democraticamente o caminho de sua sucessão, preparando lideranças em seu campo político para garantir a continuidade do projeto de autonomia dos setores indígenas e populares, mantendo a rotatividade no poder. Quando desobedeceu ao referendo que vedou sua reeleição, rompeu a institucionalidade cujo desenho ele mesmo havia liderado e perdeu a legitimidade. A fragilidade de sua posição político-institucional abriu um flanco que permitiu o avanço do golpe.

Evo Morales manteve o apoio praticamente unânime no altiplano boliviano, predominantemente indígena, sua origem e sua base de apoio. Mas, perdeu parte dos movimentos sociais urbanos e, principalmente, da Central Obrera Boliviana (a COB), antes uma peça estratégica de sua sustentação política. Sua renúncia estava na pauta da direita e dos movimentos empresariais, mas também da COB e de outros movimentos populares urbanos.
Há uma guerra de narrativas sobre o que se passou nas últimas horas naquele país. A oposição, principalmente da direita liderada por Fernando Camacho, diz que não houve golpe. Aproveitam-se do erro do presidente que renunciou para transferir para ele a tentativa golpista que teria sido apenas interrompida. Evo Morales e seus aliados insistem na narrativa de um golpe, sem contudo reconhecer seus erros. A controvérsia sobre a fraude eleitoral redundou em um informe preliminar da auditoria da OEA confirmando irregularidades que anulariam o pleito. Sob pressão e sem argumentos em defesa do resultado eleitoral, o ex-presidente anunciou que convocaria novas eleições e renovaria a integralidade do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE). Não esclareceu, porém, se concorreria, nem definiu data. Não foi suficiente para conter o golpe que já estava nas ruas. A polícia havia aderido aos protestos e à greve. Pouco tempo depois do anúncio de convocação de novas eleições, as forças armadas pediram pela TV estatal a renúncia de Evo Morales. O comandante da polícia também pediu que renunciasse. A polícia recebeu ordens de buscar e prender os autores da fraude eleitoral. Duas cenas de TV fizeram o retrato do golpe, dispensando interpretações jurídico-políticas. Na primeira, a coletiva dos oficiais das forças armadas, “recomendando” a renúncia do presidente. Na segunda, a apresentação da presidente e do vice-presidente do TSE pela polícia, conduzidos de forma humilhante por agentes encapuzados. A América do Sul conhece bem o significado de imagens como essas.


Evo Morales teve o mérito de promover forte inclusão no processo político de setores excluídos, principalmente indígenas, e obter significativos avanços no campo social. Conseguiu manter a estabilidade político-institucional, mesmo promovendo mudanças importantes na representatividade da democracia boliviana. Era de esperar que sofresse dura oposição das oligarquias que viram ameaçada sua hegemonia secular. Ao final dos trabalhos da Constituinte que votou a nova Carta Política do país, Evo Morales enfrentou um bloqueio político nascido do impasse entre governistas e oposicionistas. Em dezembro de 2007, enviou ao Congresso a Lei de Convocatória de um referendo revogatório. O referendo decidiria sobre o mandato de Evo Morales e García Linera e das autoridades executivas dos nove departamentos bolivianos. No dia 10 de agosto, a permanência do governo foi aprovada por 67%. Evo Morales só não ganhou na Media Luna, a banda oriental da Bolívia, onde sofreu persistente e dura oposição desde que foi eleito pela primeira vez. É a região de Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando. O líder da direita empresarial boliviana e um dos protagonistas do golpe de agora, Fernando Camacho, tem sua base em Santa Cruz.

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