sábado, 16 de novembro de 2019

TODA MULHER QUER SER AMADA


Toda mulher é meio Leila Diniz
POR JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS /16/11/2019 10:50
Resultado de imagem para FOTOS DE LEILA DINIZA história da mulher brasileira nunca mais seria a mesma depois que o jornal O Pasquim chegou às bancas, no dia 20 de novembro de 1969, com a entrevista da atriz Leila Diniz. Cinquenta anos depois as frases que ela disparou podem parecer cândidas, mas ditas em pleno AI-5 da ditadura militar, numa sociedade dominada pelo preconceito, eram uma espécie de "independência ou morte" do feminismo nacional:
"Eu posso amar uma pessoa e ir para a cama com outra. Já aconteceu comigo."
"Felizmente eu já amei muito e espero amar mais ainda."
"Quando eu quero, eu vou com o cara."
O Pasquim (toda a coleção está disponível no site da Biblioteca Nacional) era um semanário de humor que reunia "a patota" da boemia intelectual de Ipanema, um time com Paulo Francis, Jaguar, Millôr, Tarso de Castro, Sérgio Augusto, Ziraldo e outros. Leila, 24 anos, era protagonista de telenovelas da TV Globo, como "Sheik de Agadir", e já havia estrelado pelo menos um clássico do cinema, o delicado "Todas as mulheres do mundo", de Domingos de Oliveira.
A entrevista foi realizada no sábado 8 de novembro, na casa de Tarso de Castro na rua Paul Redfern, em Ipanema, e também teria a marca revolucionária de deixar mais descontraída a linguagem do jornalismo. A conversa foi publicada exatamente como aconteceu, sem copidescagem, sem que os redatores ajeitassem os verbos, com todos os coloquialismos de um papo entre amigos de bar - e, numa época em que moça de família não fazia isso, com os muitos palavrões que a atriz falava.
O jornal era submetido à censura prévia e, para evitar problemas com os militares, os palavrões foram substituídos por asteriscos (72 no total). A bossa gráfica deixava que o leitor colocasse ali o seu próprio repertório de palavrões.
" Acho uma (*) fazer papel sexy."
"Eu tinha atitudes físicas para me desinibir, eu nadava, eu dançava, eu (*).
"Eu tinha o maior (*) de fazer filme de cangaço."
Aquela edição, de número 22 , catapultou o Pasquim de uma tiragem de 60 mil para 117 mil exemplares, iniciando um fenômeno de circulação que já em 1970 chegaria aos 200 mil (a Veja, recém lançada, com equipe monumental, não passava dos 70 mil). Graças a Leila e aos asteriscos surgia um marco da resistência da imprensa ao regime ditatorial.
Leila era amiga dos entrevistadores (Tarso, Sérgio Cabral, o pai, Jaguar, Luis Carlos Maciel e Tato Taborda) e frequentava com eles o Zeppelin, Jangadeiro e demais bares da moda em Ipanema. Jaguar lembra-se de ter estranhado quando Tarso propôs o nome da atriz para a entrevista.
"Havia uma lista de nomes mais urgentes e ela estava meio por baixo na época", diz.
Leila tinha passado o ano filmando o "Azyllo muito louco", em Paraty, com Nelson Pereira dos Santos, e atuando em três novelas. Duas em São Paulo, sem maiores repercussões, na TV Excelsior, e outra pior ainda, na TV Rio, a incrível "Acorrentados" - a novela foi retirada do ar, sem desfecho da história, no quadragésimo capítulo. Leila fazia uma freira. Ela reapareceria dias depois na capa do Pasquim. No lugar do véu da freira tinha uma toalha.
"A Leila era muito simples", revela Paulo Garcez, autor da foto icônica. "Ela tinha acabado de chegar da praia, tomou um banho e quando saiu estava com aquela toalha amarrada na cabeça. Foi ela quem propôs a foto e eu achei perfeita. Era a imagem de uma mulher linda, sem pose, desinteressada em glamour, irradiando uma naturalidade nova e um prazer evidente com o corpo. Era o tom da entrevista e a foto confirmou."
Era um Brasil sem divórcio, onde as mulheres casavam virgens, orgulhavam-se de suas prendas domésticas, ganhavam liquidificador no aniversário e os maridos, possessivos, não deixavam que trabalhassem fora. Orgasmo era assunto que não lhes dizia respeito. As cinco páginas de Leila no Pasquim revelaram ao Brasil uma mulher livre ("eu perdi a virgindade entre os 15 e os 16 anos"), querendo o direito de buscar a felicidade ao seu jeito ("Gostaria de ter 20 filhos e fazer uma escolinha em casa") e indo na contramão daqueles preconceitos. Tudo isso sem discurso, sem intelectualismo, sem queimar sutiã e principalmente sem identificar no homem o seu opressor.
"Eu seria a maior mulher do mundo se me dedicasse melhor aos homens. Estou tentando."
"Só me arrependo do que deixei de fazer por preconceito, problema e neurose."
"É bacaninha ter um homem do teu lado, um companheiro. Alguém que diga: 'está pegando fogo? Então vamos apagar juntos'."
A entrevista imortalizou Leila como referência dos avanços da mulher moderna. De resto, só problemas. As feministas intelectualizadas, como Rose Marie Muraro, acharam a conversa de ir para a cama com quem quisesse ("em geral sou eu que escolho") um retrocesso no movimento, pois focava no prazer do corpo e não na capacidade intelectual. A esquerda queria saber da luta armada, não da luta dos sexos ("o homem pode dar só uma e ser o suficiente por um ano"). A família católica achou um palavreado ("se eu quisesse fazer (*) estava rica") de prostituta. Os militares taxaram de subversão - e perseguiram a atriz.
Leila não foi mais chamada para telenovelas, ficou restrita aos filmes alternativos com os amigos e aos espetáculos de teatro de revista, como o bem sucedido "Tem banana na banda". Na busca pela sobrevivência abriu até uma loja de batas indianas em Ipanema.
O apresentador Flávio Cavalcanti, considerado amigo dos militares ("um mau caráter, um patife", segundo Leila na entrevista), foi o único que apareceu para lhe dar uma cadeira de jurada no seu programa de TV. No dia em que a polícia apareceu no auditório para prender Leila, Flávio fez com que ela saísse pelos fundos do estúdio e a escondeu por longa temporada em seu sítio de Teresópolis. No início de 1972, sem trabalho, Leila aceitou o convite para participar de um festival de cinema na Austrália. Saudosa da filha de sete meses, que deixara no Rio, antecipou a volta em um avião que explodiu na Índia.
Antes disso, ainda por causa da entrevista do Pasquim, precisou assinar no Departamento de Ordem Política e Social um documento redigido pelos militares. Nele se obrigava a nunca mais falar palavrão em público.

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