domingo, 10 de novembro de 2019

VOCÊ TEM MEDO DE QUÊ?

“ELES FAZEM ARTE, PRESIDENTE. SÃO INDESTRUTÍVEIS."

de Artur Xexéo, 
Jornal O Globo
Resultado de imagem para CARICATURA DE CENSURA"


A gente já se acostumou. Todos os dias, no caminho de casa para o trabalho, ou na volta do trabalho para casa, o presidente da República dá uma paradinha para conversar com repórteres e expor ao mundo seu mau humor e sua incapacidade de conviver com a Humanidade. Quinta-feira não foi diferente. Só que, desta vez, o presidente deu até um sorriso enquanto dizia “a classe artística deve ficar feliz, aí.”
Não sei bem se deveria botar a vírgula antes do “aí”. Na verdade, não sei o que significa o “aí” do presidente. É uma espécie de palavra mágica que serve para revelar sua indigência vocabular. No caso, ele estava se referindo às últimas medidas que tomou em relação à Cultura no país, transferindo a Secretaria Especial de Cultura do Ministério da Cidadania para o Ministério do Turismo e nomeando para o cargo de secretário o Sr. Roberto Alvim, aquele que entrou para a História porque ofendeu Fernanda Montenegro.
Houve quem visse na afirmação do presidente uma sutil ironia. O sorriso e os decretos no Diário Oficial seriam a vingança contra a classe artística que não o apoia — e, por tabela, contra a classe artística que o apoia também. Não vejo assim. Não há capacidade intelectual no presidente para exercer a sutileza. Sua ironia foi daquelas que a gente pode chamar também de deboche.
Mas não deu certo. Na verdade, a classe artística está feliz mesmo. Mas não porque ele nomeou alguém despreparado para o cargo ou transferiu a secretaria para um ministério inadequado. Isso não foi surpresa. O presidente nunca foi visto lendo um livro (nem do Olavo de Carvalho), vendo um filme ou assistindo a uma peça. O presidente despreza a Cultura, e a classe artística não espera nada dele.
A classe artística está feliz porque tem peça de Zé Celso em cartaz, tem livro novo do Chico Buarque nas livrarias, as memórias de Fernanda são best-seller, “Bacurau” já atraiu 700 mil espectadores... O presidente pode espernear, mas a arte resiste. O Brasil é celeiro de grandes artistas como João Gilberto e Bibi Ferreira, que morreram durante o governo Bolsonaro, mas não mereceram uma homenagem do presidente. Bolsonaro só não se omitiu quando morreu MC Reaça, um parodista que fazia rimas de apoio ao governo sem a menor noção do que fosse prosódia. “Será lembrado pelo dom, pela humildade e por seu amor ao Brasil”, lamentou o presidente. Não será, não. Vai ser lembrado como um MC que traiu a esposa, agrediu a amante e se suicidou.
No fundo, quando agride os artistas, o presidente demonstra ter medo. Havia uma canção, cantada pelo MPB 4 no tempo da ditadura militar, que mostra a força da arte. É “Pesadelo”, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro. Um trecho:
“Você corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu escapo morto
(...) Que medo você tem de nós”
Ele acaba com o Ministério da Cultura, dá um cargo supostamente importante na área cultural para um artista rancoroso, ameaça intervir em instituições como a Funarte, a Ancine, a Biblioteca Nacional, mas os Chicos e as Fernandas continuam aí. Os Zé Celsos e os Bacuraus também. Eles fazem arte, presidente. São indestrutíveis.

Nenhum comentário:

Postar um comentário