Sexta feira da paixão. A minha infância durou só um dia. E foi assim: brincava cheio de terra e flocos balbuciantes e folhas sorridentes de lama e resíduos insólitos. Meu pai, sem me olhar (meu pai só olhava pra fora do que não via), me deu um cavalo. E mandou o negro Vicente me ensinar como escovar o cavalo. Mas o que eu queria mesmo, era escovar o pensamento do cavalo. Minha mãe dizia que eu ia prestar pra tudo nesta vida, porque as lagartixas, até hoje, gostam de esquentar sol em meu coração (que quase caduca). Meu pai, mudo (meu pai só falava pela quase metade), austeridade de girafa, dizia que eu ia prestar pra tudo nessa vida: “você é bom menino. E pode ir embora”. Mas nunca me deu nenhum endereço. Para além da infância tosca de subúrbios da roça, os endereços são todos os que eu fui inventando. O meu cavalo foi o primeiro bicho que me disse que eu era muito parecido com ele. O negro Vicente não tinha conhecimento do ofício de escovador dos pensamentos de algum cavalo. Mas o meu avô, morrendo nas escarpas do seu fim, sem paz e com paciência, sabia: “menino meu, fecha os olhos e fica”. É assim que se faz. Minha infância acabou no rio que passava atrás de mim. Mas o rio me dizia que eu era a sua água. Era um rio estranho, que deixava que eu fosse ele, e que fabricava peixe, e soltava como se fosse passarinho sem asa. Infância é capenga e feliz. Embrulhei um pedaço do meu rio, levei pra janela, fiquei debaixo do silêncio e perguntei sobre o amor. Ele me disse que já tinha conhecido o meu amor, (porque rio vai e volta a todos os lugares), e que eu precisava esperar 100 anos. Se a gente ficar quieto, vai saber que rio fala. O meu estranho rio, que às vezes andava como gigante molenga, garantiu que o meu amor estava se preparando pra depois. De quando eu iria inventar a tristeza dentro da ilógica da vida. Como minha infância estava acabando, acreditei no que o meu rio dissera sobre o meu amor, e vim sozinho esperar os 100 anos. Agora acho que eu fui preso por mim, comigo dentro, na aldeia de saudade de Conceição do Almeida.
Maravilhoso texto....
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