quinta-feira, 8 de setembro de 2022

ATRAVESSANDO O TAMISA

O 23 para a dez metros da casa que me hospeda. Vai me levar de Elgin Crescent a Saint Paul Cathedral pelas ruas tranqüilas deste domingo ensolarado. Pois é, parece mentira que, em abril londrino, o sol continue assim, teimoso, me acompanhando durante quase uma semana, desde a chegada até a partida. Como vocês podem adivinhar, é tema obrigatório na fila da padaria, no hospital, no Parlamento e nas delegacias “What a gorgeous weather! Isn´t?”. O adjetivo gorgeous enche a boca, enfaticamente, enquanto os olhos se dirigem para o céu, extasiados.

Do alto do segundo andar do ônibus, sentado na primeira fila, a cidade é minha. Sou íntimo das cimeiras das árvores que deixam aparecer as primeiras folhas, meu olhar condescende, sem maior atenção, em notar as vitrines de Oxford Street, passeio por arcos e obeliscos, paquero Hyde Park e tiro o chapéu para a National Gallery. 

Descendo com calma a escada - aqui passageiro não é gado - saio do vermelhão bem na porta da catedral. Vamos dar uma espreitada? Elegante, solene e fria, é a jóia, entre quarenta outras igrejas de Christopher Wren que foi um pouco o Pombal ou o Palladio londrino, após o desastroso incêndio de 1666. Lá foi celebrado o casamento de Charles e Diana. Imagino o templo cheio de senhoras de chapéu extravagante e senhores disfarçados de corvo, a noiva linda e o irrequieto príncipe guardando no narigão um pouco de “Camilla´s Tampax”, seu perfume preferido. Com tal cenário, não estranho que tenha dado tudo errado. Mas, neste exato momento, longe das pompas reais, um coral afinadíssimo parece iluminar até os vitrais da capela-mor, quebrando a rebarbativa austeridade do lugar.

 


Sem dificuldade, encontro a nova ponte que atravessa o Tamisa para levar-me ao novo Tate, xodó, “talk of the town” do Reino Unido. A Tate Gallery era, com a Wallace Collection, programa favorito quando estudante. Meu fascínio hesitava entre Rothko e Turner. O Tate Modern ainda não existia. Vale a viagem, só por si. A ponte já anuncia o choque cultural, com sua tubulação de linhas arrojadas, unicamente reservada aos pedestres.

Aliás, em Londres, o pedestre é rei. Passeios largos e bem mantidos, preferência absoluta na hora de atravessar as ruas – pacientes e sorridentes motoristas - calçadões por toda parte. Nunca você se sentirá a vítima escolhida entre mil para ser perseguida por um trânsito assassino. O único senão é aprender a olhar para direita antes de atravessar. E acredite: não é fácil.

 


O novo Tate foi aproveitado a partir de uma gigantesca central elétrica desativada. Tudo foi deixado, dentro do coerente, como na origem. O resultado? Uma simbiose perfeita entre arquitetura industrial e arte moderna.

Já na entrada, uma obra de Anish Kapoor, excepcional como de costume, enfrenta um grande retrato de Francis Bacon. Está dado o tom do museu. Daqui para frente, se segure! Antoni Tapiés, Fautrier, Dubuffet, Tobey, Giacometti, Asger Jorn, Nicolas de Stael e tantos outros cuja lista se tornaria fastidiosa. Confesso ter sentido espanto com uma “Nymphea” de Monet, que entra sem remorso num espaço abstrato/gestual rigorosamente contemporâneo e sustenta sem fraquejar a vizinhança de Jakson Pollock e Joan Mitchell. 

Entre cem artistas que desconheço, descubro a obra de Albert Oehlen. Trabalha com materiais que sempre achei interessantes: cartazes e outdoors sobrepostos, rasgados, manchados, agredidos. Resulta numa obra forte e incômoda, entre pintura e escultura, que não se contenta em ser. Ela pula da parede, vem a seu encontro e lhe perturba. Uma informação declara que se trata de “Material gesture”. Gostei.

Elevadores levam o público até a lanchonete do terceiro andar e o restaurante do quinto. Visto o preço de um simples copo de água lá encima, me contentarei com um sanduíche no self-service frente à vista cinemascópica do rio. Passeiam longos barcos. Ponte sempre agitada de curiosos. Do lado de lá, harmônica mistura de edifícios neoclássicos e altos prédios de desenho arrojado.   A paisagem é banhada numa luz difusa, como se alguém tivesse esticado um leve véu de ponta a ponta para amenizar e diluir o eventual e fugitivo excesso de luminosidade.

O mesmo 23 me trará de volta a uma xícara de chá no jardim secreto.

 

Dimitri Ganzelevitch                                                                              Salvador, 22 de abril de 2009.

 

2 comentários: