segunda-feira, 12 de setembro de 2022

O RETRATO DA VELHA SENHORA

 

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Meu companheiro de viagem insistiu para irmos primeiro a Ketu em vez de Abomey, como eu imaginava. Mas quem sou eu para influir nas decisões de tão experimentado antropólogo, em terras de vodus?
Lembra meu diário, religiosamente atualizado a cada dia, que o François, jovem, magro e sorridente taxista, veio nos pegar com seu velho calhambeque, para enfrentar 146 kilômetros de estrada caótica. Da visita ao rei de Ketu, já falei em outras páginas. Da total falta de água mineral e comida também. Voltamos ainda cedo para Cotonu, porque as noites ainda são inseguras neste país tropical tão parecido com o Recôncavo Baiano.
Num destes inúmeros povoados - na verdade, a estrada não é senão uma interminável rua – paramos, após um dia de camelo, para comprar um providencial refrigerante de cor inquietante. Umas casas de alvenaria mal-acabada junto ao trânsito não escondem outras, redondas, de barro, com telhado protegido por palmas de coqueiros. Velhas trabalham na roça, longos seios descobertos, indiferentes à moda urbana das adolescentes.
A cada cinqüenta metros, há um barbeiro com letreiro colorido. Este deve pertencer à fina flor da redondeza. O cartaz anuncia “Prince Fasco Dagama / Décorateur – Coiffeur”. Notem o Fasco Dagama significando origens brasileiras, aqui consideradas como aristocráticas. Encontraremos muitas vezes referências ao Brasil como fonte de sociedade privilegiada.
Como 90% dos cabeleireiros beninenses, o Prince, que é nome e não título, é também pintor. Dele a placa que indica o leque de penteados possíveis. Cada penteado tem seu nome.
Dele também um extraordinário retrato sobre sutil fundo azul e rosa, lembrando os “early americans”. É uma senhora aparentando uns sessenta anos, vestida de longo quadriculado. Reta, séria, imponente, ela olha fixamente o pintor na sua frente, pés calçados de chinelo de dedão, mãos postas em evidência nos joelhos.
“As mãos são sempre importantes para nós” afirmará mais tarde Abe Odedina, amigo nigeriano, ao contemplar o quadro.
A técnica pode não ser muito acadêmica, mas é notável a preocupação do artista em transmitir fidelidade ao rosto, enquanto o resto do corpo é mais eventual. Teve com certeza a ajuda de uma foto de identidade. Não importa. É um magnífico retrato.
Pergunto quem é a senhora imortalizada.
“Ah! Não sei. Ela encomendou o retrato, mas nunca veio buscar. Você quer comprar?”
Evidente que eu quero. Quero a obra-prima já, agora, sem mais um minuto de espera.
Levo-o para o táxi, olhando à minha volta, com medo de que a retratada resolva, de repente, surgir e reclamar sua imagem.
Hoje, o retrato da velha beninense está em lugar de honra na sala principal de minha casa.

Dimitri Ganzelevitch
Salvador, 24 de novembro de 2008

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