Longe das multidões que fotografam tudo e qualquer coisa nos Champs-Élysées ou no Trocadero, a cem metros da vida um tanto sórdida de Pigalle e adjacências, e pouco acima do Moulin Rouge, proponho hoje passear numa cidade quase desconhecida, mais secreta e mais humana. O mais simples, seja onde você estiver, é pegar o metro e emergir dos fundos da terra na estação Abbesses.
Tem até um carrossel cheio de
luzes e espelhos com cisnes e cavalos e estas musiquinhas do tempo de sua
tetravó. Mesmo assim não é dos lugares mais invadidos pelas hordas de turistas.
Pergunte a um comerciante onde fica a Halle
Saint Pierre e comece a passear, sem pressa. Sem pressa, por favor. É
primavera e hoje até temos um sol... primaveril. Não é uma sorte? Então,
aproveite bem, porque não vai durar muito.
Por aqui tem de tudo. Tem
bistrôs, venda de revistas, boutiques, livrarias, antiquários, teatros. Levante
os olhos. Gente na janela, pássaros nas árvores. Até o ano passado havia uma
loja, Tam-Tam, que era caverna de Ali Babá. O patrão tinha viajado pelo mundo
inteiro, trazendo tesouros para qualquer curioso, colecionador e antropólogo.
Lá encontrei maravilhas, em especial da África. Era preciso olhar com atenção
onde colocar os pés, pois a loja pequena transbordava de coisas para você tropeçar
e quebrar. Infelizmente, no princípio deste ano da graça de 2009, o homem
resolveu se aposentar, mas ainda trabalha em casa.
Siga ao acaso da sua andança
até a Halle Saint-Pierre. Já foi mercado
na juventude de Edith Piaf. Toulouse-Lautrec deve ter passado por lá, mas não
vou jurar que ele comprou frutas e verduras neste belo edifício de ferro, primo
do teatro de Fortaleza e talvez oriundo da mesma fundição. Hoje é um museu de
Arte Bruta (Fora das normas) e sua diretora Martine Lusardy, é uma das mais
dinâmicas de Paris. Conhece a Bahia e esteve na minha casa, apreciando desde a
sacada o deslumbrante desfile do 2 de julho. Em qualquer época você terá a
oportunidade de ver uma exposição excepcional de qualidade, sempre à volta das
artes do Inconsciente. Aliás, lá foi apresentada parte do acervo do famoso
museu carioca da professora Nize da Silveira.
Saindo da Halle, poderá escolher entre duas direções. Ou se enfiar nas lojas da rue Saint-Pierre onde variedade e preços dos tecidos justificam a multidão que lota este espaço ao longo do dia, ou ir simplesmente descansar as pernas num banco do pequeno jardim ao pé da colina dominada por Notre-Dame du Sacré-Coeur, basílica de Montmartre. Numa tarde de fim de abril, meu corpo inteiro pedindo piedade, fui me esparramar ao sol de um banco de onde podia, não só apreciar os jardins da encosta e o bizarro/bizantino templo, mas me divertir com o espetáculo das criancinhas brincando ao redor de mais um carrossel.
Para quem reclama, sem muito conhecimento de causa, dos preconceitos raciais dos gauleses como regra absoluta, permita-me sugerir sentar em qualquer jardim público da França para moderar esta afirmação. É impressionante e comovente a mistura racial da maior parte deste povo. Não somente o espetáculo permanente nas lojas, nas ruas e nos mais variados empregos dos refugiados, exilados e esfomeados de outros continentes, mas o número de casamentos entre gente vinda do Vietnam, Indonésia, Senegal, Tunísia, Benin ou Egito e duponts ou durands branquinhos da silva. E afinal, não será sintomático, mesmo num governo de direita como Sarkozy, para mostrar à opinião pública que não é preconceituoso, ter duas ministras árabes e uma secretária de estado negra*? Mesmo aqui, nesta nossa boa terra, repare no número de negros ou índios nos altos escalões ou tente acompanhar discretamente um jovem casal b/p, como conheço alguns. Ainda que ambos baianos, não faltarão as piadinhas tipo “Se deu bem!”. E se um(a) for gringo(a), pior ainda. Preconceito é a doença mais bem distribuída do mundo.
Quando o dia deixa, enfim, à
lua seu devido espaço, vários cafés mudam de freguesia, pois agora músicos
começam a afinar os instrumentos na calçada e, dentro de pouco, haverá jazz ou
salsa em cada esquina. É de uma França amiga e sensível que lhes falo, mais
secreta, que tem na sua milenar cultura uma filosofia de resistência ao agito
das sociedades imediatistas, consumistas e competitivas.
Vale a pena pegar o metrô até
a estação Abbesses.
Dimitri Ganzelevitch
Salvador, 13 de maio de 2009.
*Esta sendo, de longe, a mais
popular.
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