A crise de Israel e as contradições históricas do sionismo
Com Israel tendo completado 73 anos de sua declaração de independência em meio a novos crimes de guerra na Faixa de Gaza e a uma operação de limpeza étnica em Jerusalém, estamos republicando este artigo sobre a fundação e a evolução do Estado sionista, que concentra as grandes contradições não resolvidas do século XX. O artigo foi publicado originalmente em 29 de maio de 1998, depois de Israel ter completado 50 anos de sua fundação.
Israel comemorou os 50 anos de sua fundação em meio a uma crescente crise política e social do Estado sionista e tensões cada vez maiores com o povo palestino nos territórios ainda ocupados pelas forças israelenses, bem como com o mundo árabe ao redor.
Nenhuma das comemorações oficiais organizadas em Israel, nem as celebrações glamorosas e superficiais encenadas pelos amigos de Israel nos EUA e em outros países, tocaram nas profundas questões históricas subjacentes à fundação do Estado de Israel.
No nascimento e na evolução de Israel estão concentradas as grandes contradições não resolvidas do século XX. Suas origens essenciais estão em um dos maiores crimes da história contra a humanidade, o Holocausto nazista. O extermínio de seis milhões de judeus europeus foi, por sua vez, o preço terrível pago pela crise do movimento da classe trabalhadora provocada pela degeneração stalinista da União Soviética e da Internacional Comunista. Os crimes do Stalinismo e seu controle sobre o movimento operário impediram a classe trabalhadora de pôr fim ao sistema capitalista, que encontrou no fascismo sua última linha de defesa.
As derrotas da classe trabalhadora, os crimes do Stalinismo e os horrores do Holocausto criaram as condições históricas para a criação de Israel e a tentativa bem-sucedida do movimento sionista, auxiliado tanto pelo imperialismo americano quanto pelo Stalinismo, de igualar o sionismo ao judaísmo mundial. O movimento sionista e o Estado de Israel foram fundados, em última instância, no desânimo e no desespero. As traições do Stalinismo produziram uma desilusão na alternativa socialista que tinha exercido uma influência tão poderosa nos trabalhadores judeus em todo o mundo. Os crimes do fascismo alemão foram apresentados como a prova definitiva de que era impossível derrotar o antissemitismo na Europa ou em qualquer outro lugar. A resposta do sionismo foi conseguir um Estado e um exército e derrotar os opressores históricos do povo judeu em seu próprio jogo.
A trágica ironia dessa suposta solução é a associação de Israel do povo judeu – tradicionalmente e historicamente ligado à luta pela tolerância e liberdade – com a brutal repressão de outra população oprimida.
David Ben-Gurion leu a declaração da independência de Israel em 14 de maio de 1948, um dia antes do mandato do Reino Unido sobre a Palestina expirar. Em menos de um ano, as forças militares israelenses conseguiram expandir as fronteiras internacionalmente reconhecidas do país, enquanto mais de 750 mil árabes palestinos foram expulsos de suas casas em uma campanha sistemática de terrorismo e intimidação.
Ben Gurion descreveu a realização do Estado de Israel como a “culminação da revolução judaica”. Essa “revolução” representou a realização do objetivo político central do sionismo, o movimento nacionalista judeu fundado no final do século XIX. Antes da Segunda Guerra Mundial, o sionismo havia permanecido um movimento relativamente isolado, recebendo apoio principalmente de setores da classe média judaica. Mesmo na Palestina, existia entre os trabalhadores judeus um poderoso sentimento de classe para unir os trabalhadores judeus e árabes num movimento comum contra o capitalismo.
Embora o Holocausto tenha levado o sionismo ao poder de Estado, as verdadeiras relações entre os crimes cometidos pelo nazismo contra os judeus europeus e o movimento sionista foram objeto de sistemática distorção histórica. Israel é retratado como o refúgio necessário para os judeus fugindo dos campos de extermínio alemães. No entanto, a atitude do sionismo em relação à luta para salvar os judeus do extermínio não foi tão simples assim.
Esse é um dos muitos assuntos que os historiadores israelenses começaram a examinar. Conhecidos como os “novos historiadores”, que faz parte da escola “pós-sionista” ou “revisionista”, o surgimento dessa atitude crítica em relação à história de Israel é um dos sinais mais profundos da crescente crise do sionismo como uma ideologia e de Israel como uma sociedade.
Entre esses novos historiadores está Zeev Sternhell, autor de The Founding Myths of Israel, publicado recentemente em inglês. O livro de Sternhell desmascara alguns dos mitos mais poderosos do sionismo, principalmente que os líderes sionistas que fundaram Israel estavam tentando estabelecer um novo tipo de sociedade baseada em princípios igualitários e até mesmo o socialismo.
Esse historiador considera que o sionismo não era de modo algum único. Ele surgiu como uma expressão peculiar do nacionalismo europeu oriental do século XIX; um movimento baseado não em princípios democráticos universais, mas em concepções exclusivistas de hegemonia étnica, religiosa e linguística. Ironicamente, um movimento que reivindicou defender a libertação dos judeus encontrou um significativo terreno em comum com os antissemitas e os precursores nacionalistas de direita do fascismo alemão.
O sionismo, escreveu Sternhell, “foi desde o início a preocupação de uma minoria, que entendeu o problema judaico não em termos da existência física e da provisão de segurança econômica, mas como um empreendimento para resgatar a nação do perigo da aniquilação coletiva”. Ele percebeu que o maior perigo de aniquilação vinha da assimilação dos judeus pela sociedade moderna, particularmente através da atração de um crescente número de trabalhadores judeus para o movimento socialista.
Na medida em que os fundadores do Estado sionista tentaram identificar o sionismo com o movimento operário, a igualdade e o socialismo, escreve Sternhell, o sionismo tornou-se um “mito mobilizador”, destinado a ganhar os judeus da classe trabalhadora para a causa do nacionalismo. Ele argumenta que esse uso da fraseologia socialista tinha muito em comum com outros movimentos “nacionalistas” que buscavam o ressurgimento nacionalista na Europa, que, no limite, deu origem ao nazismo.
Certamente é possível afirmar que muitos outros movimentos nacionalistas ao longo do século XX, incluindo o nacionalismo árabe, que se apresentou como socialista e igualitário, utilizaram esse “mito mobilizador”. Em todos os casos, tais ideologias têm o propósito de encobrir os interesses da burguesia nacional e suprimir a luta independente da classe trabalhadora.
Quanto à justificação de Israel como o único refúgio possível para os judeus fugindo da opressão nazista, Sternhell, assim como outros historiadores – entre eles Tom Segev, autor do livro The Seventh Million, the Israelis and the Holocaust – apresentaram amplas evidências de que o resgate dos judeus europeus nunca foi uma preocupação primordial para o sionismo como um movimento, e que Ben-Gurion e outros líderes sionistas reagiram com indiferença em relação a esse resgate.
Prestes a eclodir a Segunda Guerra Mundial, com a ameaça do nazismo aos judeus da Europa cada vez mais clara, Ben-Gurion definiu o princípio que guiaria a atitude do movimento sionista durante o Holocausto: “Considerações sionistas têm precedência sobre os sentimentos judaicos... nós devemos agir de acordo com considerações sionistas e não apenas considerações judaicas, pois um judeu não é automaticamente um sionista.” Durante toda a guerra ele argumentou com sucesso contra aqueles que sugeriram que a Agência Judaica na Palestina voltasse sua atenção da construção da “Eretz Yisrael” (“Terra de Israel”) para o resgate dos judeus do nazismo.
Ao mesmo tempo, os sionistas não perderam tempo em fazer uso da catástrofe na Europa para seus próprios fins. Seus esforços foram bem-sucedidos à medida que a população judaica sem-teto e sem-pátria da Europa era direcionada à Palestina por razões geopolíticas bem definidas. Washington, que fechou as fronteiras dos EUA para os judeus que fugiam da opressão nazista, viu o surgimento do Estado judeu no Oriente Médio como um instrumento para afirmar sua própria hegemonia na região à custa da Inglaterra e da França, as antigas potências coloniais na região.
Fundado na luta para arrancar o controle da terra de seus habitantes árabes, Israel foi desde suas origens um estado militarizado, com o exército servindo como o pilar central da sociedade. Cercado por estados árabes hostis e colocando-se como uma nova forma de sociedade, fundada sob princípios de igualdade e vagamente socialistas, o novo Estado foi amplamente considerado oprimido e merecedor de simpatia popular.
Porém, tanto a realidade quanto a percepção do Estado de Israel mudaram à medida que se tornava uma força militar indiscutível e passava a ser única potência nuclear na região. Primeiro veio a guerra de Suez em 1956, na qual Israel rapidamente tomou a Península do Sinai. A guerra de 1967 redesenhou novamente o mapa do Oriente Médio, estabelecendo os parâmetros do atual conflito. Com o apoio dos EUA, Israel invadiu o Egito, a Síria e a Jordânia, conquistando a Cisjordânia, as Colinas de Golã e a Faixa de Gaza, que ocupa até hoje. O sionismo e o Estado de Israel surgiram como uma força de agressão e expansionismo. Israel depois travou outras guerras contra o Líbano, onde continua a ocupar uma “zona de segurança” no sul.
A inicial expansão militar de Israel foi possível graças a uma maciça e contínua ajuda econômica e militar dos EUA. A “relação especial” entre Washington e Israel, que inclui uma ajuda anual de 3 bilhões de dólares dos EUA ao Estado judeu, não se estabeleceu por princípios compartilhados entre os dois países ou por simpatia dos EUA pela opressão histórica do povo judeu. Ao invés disso, os EUA apoiam Israel como um estado de guarnição que serve para suprimir os esforços revolucionários das massas do Oriente Médio, ao mesmo tempo em que fornece um meio de ampliar a influência dos Estados Unidos nesta região estrategicamente vital produtora de petróleo.
O militarismo israelense foi acompanhado do crescimento de tendências políticas e sociais reacionárias dentro do próprio Estado de Israel. A ocupação e administração de Israel da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, exercendo uma ditadura política sobre cerca de um milhão de palestinos, não apenas expôs o caráter opressivo do Estado israelense, mas trouxe à tona todas as contradições incorporadas no sionismo como um movimento.
Em 1968, assentamentos sionistas foram iniciados na Cisjordânia e em Gaza, ambas recentemente ocupadas, com o objetivo de servir como postos paramilitares na linha de defesa contra ataques de guerrilheiros palestinos contra Israel. Enquanto o governo do Partido Trabalhista inicialmente apresentou os assentamentos tendo não mais do que um caráter defensivo, o que não impediria a devolução dos territórios à Jordânia e ao Egito, a questão da Cisjordânia e da Faixa de Gaza rapidamente se tornou o ponto central da política israelense.
A oposição de direita sob a liderança de Menachem Begin exigiu que os territórios fossem colocados sob o domínio israelense, alegando que eles eram as terras bíblicas de Samaria e da Judéia, prometidas por Deus ao povo judeu. Trinta anos depois, a questão ainda não foi resolvida, apesar da tão anunciada paz no Oriente Médio, intermediada pelo governo Clinton e assinada por Israel e pela Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Cento e quarenta e quatro assentamentos estão espalhados pelos territórios, habitados por 160.000 colonos, muitos deles nacionalistas extremistas e fanáticos religiosos que estão fortemente armados.
Os assentamentos continuam a crescer a uma taxa de 9% ao ano, apesar do acordo assinado com a OLP. O governo israelense insiste que suas forças devem controlar as estradas de acesso a esses enclaves e sua conexão com o próprio Israel. Isso por si só expõe o caráter amplamente simbólico de qualquer estado palestino “independente” que possa surgir desse processo. A Autoridade Palestina é deixada para policiar pequenos territórios, principalmente cidades empobrecidas, enquanto permanece cercada e isolada por tropas israelenses. Como o impasse nas negociações intermediadas pelos EUA deixa claro, o Estado de Israel não está preparado para fazer quaisquer alterações fundamentais na situação atual.
A motivação de Israel para assinar o acordo no Oriente Médio foi, em primeiro lugar, impedir um levante revolucionário das massas palestinas nos territórios ocupados, que tomou forma embrionária na intifada iniciada em 1987. Apesar da contínua e brutal repressão, Israel provou incapaz de derrubar esta rebelião sem a colaboração direta da OLP.
Ao mesmo tempo, a classe dominante israelense estava ansiosa para escapar dos custos econômicos e sociais punitivos associados à ocupação, tanto em termos de gastos militares quanto do status de Estado-pária que Israel adquiriu em todo o mundo árabe e para muitos outros países.
Mas, como mostraram o assassinato de Yitzhak Rabin em novembro de 1995 e o subsequente retorno ao poder da direita israelense sob o comando de Benjamin Netanyahu, não é tão fácil escapar das contradições históricas do sionismo. A política de assentamentos iniciada pelo Partido Trabalhista gerou uma camada nacionalista e semifascista de direita, que produziu o assassino que tirou a vida de Rabin. Cada vez mais, o debate sobre o futuro dos assentamentos, bem como o cada vez maior conflito entre os judeus israelenses seculares e religiosos, possui o caráter de uma “guerra civil”.
Com poder desproporcional no governo, os partidos políticos ultra-ortodoxos de Israel impuseram cada vez mais os ditames da lei religiosa judaica em áreas anteriormente consideradas seculares. Todo o controle administrativo sobre nascimentos, casamentos e funerais foi colocado nas mãos do rabinato ortodoxo, para grande consternação de judeus conservadores, reformados e seculares. Os membros ortodoxos do Knesset, o parlamento israelense, que desempenham um papel crucial em formar a maioria dos governos de coalizão, estão exigindo leis que fechem as estradas e acabem com os voos da El Al, a companhia aérea nacional, aos sábados. Muitas comunidades se dividiram amargamente entre judeus ortodoxos e seculares, chegando ao confronto físico entre eles.
Não menos profundos são os abismos sociais que surgiram em Israel. Em um país que já afirmou precisar de todos os imigrantes judeus para o trabalho de construção nacional, 8,2% está desempregada de acordo com os números oficiais. Os desempregados estão concentrados nas empobrecidas “cidades de desenvolvimento”, como Ofakim, no deserto de Negueve. Nessa cidade, tumultos começaram seis meses atrás, depois que a taxa de desemprego chegou a 14,3%.
Os judeus etíopes também se revoltaram no ano passado com o tratamento desigual dado a eles. O ressentimento dos judeus sefarditas, aqueles originados no mundo árabe, contra o establishment asquenazita, ou judeu europeu, emergiu como um volátil e importante fator na política israelense. Menachem Begin foi capaz de manipular esse ressentimento à direita, em grande parte devido à flagrante contradição entre as pretensões socialistas dos fundadores sionistas de Israel e a imensa polarização social que existe hoje na sociedade israelense.
Uma contradição econômica essencial continua a minar tanto o projeto sionista quanto a concepção subjacente ao acordo de paz do Oriente Médio de uma nova parceria econômica entre a burguesia israelense e suas contrapartidas árabes. O setor que mais cresce em Israel é o de alta tecnologia, que não produz nem para o mercado nacional nem para o regional. 96% das exportações de Israel e 93% de suas importações são realizadas com áreas fora do mundo árabe.
Enquanto o impasse sobre os territórios ocupados congelou em grande parte o crescimento dos laços econômicos entre árabes e israelenses, o desenvolvimento de tais relações acabaria acontecendo à custa das massas de trabalhadores, tanto árabes quanto judeus. O mundo árabe oferece ao capitalista israelense a perspectiva de novas reservas de mão-de-obra barata para diminuir ainda mais as condições de vida dos trabalhadores em Israel.
Enquanto isso, nas áreas administradas pela OLP em Gaza e na Cisjordânia, os trabalhadores palestinos estão descobrindo que sua situação de opressão social só piorou, ao mesmo tempo que uma pequena camada de burocratas do governo e homens de negócios com conexões políticas aumentam suas fortunas.
Cinquenta anos após a fundação de Israel, a utopia sionista reacionária de um Estado nacional em que os judeus do mundo todo puderam encontrar refúgio, unidade e igualdade foi realizada através de um estado capitalista criado pela expropriação de outro povo e mantido através da guerra, repressão e desigualdade social. Como o assassinato de Rabin e outros atos violentos das forças de extrema direita cultivadas pelo Estado sionista mostraram, há o perigo de que o próprio Israel reproduza as condições de ditadura e de guerra civil das quais uma geração anterior de judeus europeus fugiu.
O beco sem saída do sionismo é uma expressão peculiar do fracasso de todos os movimentos que se basearam na perspectiva do nacionalismo para resolver qualquer uma das questões fundamentais enfrentadas pelas massas trabalhadoras. Isso não é menos verdadeiro para os países árabes, onde as elites dominantes manipularam sentimentos nacionalistas e um amargo ressentimento de Israel a fim de desviar as lutas sociais da classe trabalhadora.
Há apenas uma maneira de superar as contradições da sociedade israelense: unindo os trabalhadores árabes e judeus em uma luta comum contra o capitalismo e pela construção de uma sociedade socialista, que derrubaria as fronteiras artificiais que dividem os povos e as economias da região. Só assim a região pode se libertar da guerra e da opressão, alimentada pelo impulso dos lucros dos capitalistas estrangeiros e das classes dominantes nativas.
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