sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

DUAS FERAS NO FERA


Tenho com o Fera Palace e seu dinâmico dono uma relação ambígua. Por um lado, admiro a coragem do empresário por ter investido em mais de cem imóveis com tanto entusiasmo numa parte da cidade que ainda não consegue reviver seu passado. Por outro lado, com a tão propalada trajetória profissional que inclui o famosíssimo Claridge´s de Londres e a participação de um supostamente também famoso arquiteto dinamarquês, esperava algo mais que esta entrada bizarra (aquele papel de parede!...) um lobby mais bizarro ainda e um comedor minimalista.

Nos primeiros tempos o restaurante servia um rango abaixo de qualquer expectativa cujo preço bem popular ajudou a afundar o Mini-Cacique, aconchegante bistrô da vizinha rua Rui Barbosa. Serviço amador e cozinha deprimente. Após três tentativas frustrantes, renunciei.

Foram necessários quatro anos para retomar o caminho do dito. Nada mudou a não ser uma cortina que isola simbolicamente o restaurante. Perdão: algo mudou, e muito: a qualidade da mesa, hoje a cargo de dois excelentes cozinheiros. Palavra que nada tem de restritivo: não aguento mais o chavão “chefe”. Hoje todo mundo é chefe, mas os bons, tradicionais e competentes profissionais cozinheiros são diamantes raros.

Reserva feita poucas horas antes, lá fui almoçar com dois amigos franceses de paladar apurado. Sala cheia numa terça-feira. A burguesia local começa a se aventurar no centro histórico graças a iniciativas como esta. Serviço amável como quase sempre na Bahia e um pouco atrapalhado, como quase sempre na Bahia. Não sei se o menu é escondido propositalmente, mas não nos foi apresentado ao mesmo tempo que a carta. Tive que pedir. Nos perguntaram sobre a sobremesa sem terem servido o prato principal. Tinha sido esquecido. Nada de dramático. Valeu a espera. Minha entrada, tártaro de Angus, estava deliciosa apesar de pouca e o bacalhau também saboroso apesar de pouco e do peixe ter perdido boa parte de seu gosto. Sobremesa perfeita, equilibrada e leve. Voltaremos com certeza nem que seja só para, novamente, sermos atendidos pela Juliana.

Resta, se me for permitida alguma sugestão, criar um menu degustação como no Origem e solucionar o problema da reverberação acústica, nesta terra onde se fala sempre muito alto.

Da mesma empresa, após longa demora, o Palacete Tira-Chapéu deve inaugurar em breve. Me preocupa um pouco o público-alvo. Suponho que terá sido elaborada uma cuidadosa pesquisa de mercado, porque entre o Comércio desertificado, o Pelourinho decadente e o turismo sazonal, encher os vários espaços do belo imóvel durante doze meses não vai ser fácil. Mas o apoio de todos aqueles que acreditam no centro histórico – como eu desde 1975 – será determinante para que a Rua Chile volte ao antigo esplendor.

Dimitri Ganzelevitch

A Tarde, 21 de janeiro 2023

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