FOTO THOMAS LOHNES/GETTY IMAGES
Diz-se estar na posse da biblioteca do Palácio de Mafra a maior coleção de livros proibidos pela Inquisição. São muitos e, ainda assim, constituem tão só uma partícula da imensidão de livros proibidos ao longo da história da humanidade. Jamais saberemos quantos foram, ou, na sua totalidade, quais foram violados na sua função de contacto com um hipotético leitor.
A tentação de controlo do pensamento; o desejo de esconder, para que outras luzes não se acendam em quem contacta com novas realidades; a voragem de determinar o aceitável, segundo regras e códigos radicados na mais absoluta arbitrariedade; a brutalidade contida no ato de quem se arroga o direito de decidir o que pode ou não ser lido por outrem; o desassossego gerado pelos vigilantes de almas e condicionadores do pensamento tem sido uma constante em todos os regimes políticos, sociais ou religiosos. Há variações de grau ou de intensidade, e essa diferença não constitui apenas um detalhe, mas o gérmen da barbaridade está lá e todos acabamos por ser vítimas. Direta ou indiretamente.
Ao longo da história, vários têm sido os artistas a refletir sobre esta tentativa de agrilhoar discursos incómodos, transmitidos não apenas pelo livro, como por todas as outras manifestações artísticas. A literatura será porventura a face mais visível das consequências desse ferrolho, mas é apenas uma das componentes desta batalha com muitas faces.
A multipremiada artista argentina Marta Minujín, 74 anos, causou sensação na edição deste ano da feira de arte “documenta 14”, inaugurada há dias em Kassel, na Alemanha, ao apresentar o seu “Parténon dos livros proibidos”. Inspirada no Parténon de Atenas, construído entre 447 e 38 antes da nossa era para acolher uma estátua da deusa Atena e as reservas de prata da cidade, é uma instalação gigantesca com 70 metros de comprimento, 30 de largura e 19 de altura. As suas 48 colunas acolhem 100 mil exemplares de livros proibidos ou censurados num qualquer lugar do mundo e num qualquer tempo histórico, doados por particulares ou instituições. Estão apenas excluídos os livros religiosos ou publicações pornográficas.
Numa altura em que o comprometimento cívico ou político dos artistas parece constituir uma mancha no seu percurso, como se o ativismo político lhes fizesse perder um imaginário estatuto passível de lhes conceder uma mítica aura que os colocaria acima das minudências da coisa pública, é salutar ver o assumido empenhamento de Marta na denúncia de uma das mais vis atividades humanas: a censura.
Marta Minuín sabe bem do que fala. Esta ideia começou por ser materializada na sua Argentina natal, logo após o fim da cruel ditadura civil-militar que se apoderou do país sob as ordens, entre outros, do general Rafael Videla, entre 1976 e 1983. O regime instaurando logo após o golpe instituiu uma forma inédita de crime político: o desaparecimento forçado e clandestino.
Os presos, sindicalistas, militantes peronistas e de esquerda, jornalistas e intelectuais, considerados suspeitos, eram encaminhados para cativeiros ilegais, os Centros Clandestinos de Detenção. Ali, eram torturados e, em geral, assassinados. Os corpos foram enterrados em valas comuns, incinerados ou arremessados ao mar, nos chamados voos da morte. As torturas físicas e psicológicas, os fuzilamentos, os sequestros de bebés recém-nascidos, filhos de prisioneiras políticas, constituíram práticas comuns naqueles mais de 300 Centros que se estima terem existido espalhados por toda a Argentina.
Com o regresso da democracia, Marta erigiu o seu primeiro e mais modesto Parténon dos livros proibidos durante três semanas, com apenas 20 mil exemplares, na avenida 9 de julho, em Buenos Aires.
Na Documenta, o novo e gigantesco Parténon, uma réplica à escala do original ateniense, estará visível até 17 de setembro. Não será apenas por coincidência que Marta decidiu colocá-lo na Friedrichsplatz, em Kassel. Naquela mesma praça, no dia 19 de maio de 1933, os nazis queimaram uns dois mil exemplares de livros tidos como “decadentes” ou “degenerados”. Não é despiciendo recordar que o ato teve o acompanhamento e o aplauso de umas 30 mil pessoas. Tudo aquilo ocorria dois dias após uma queima massiva de livros, em dezenas de cidades alemãs, de autores classificados como judeus, marxistas ou pacifistas, no âmbito de uma campanha dirigida por universitários pertencentes à juventude hitleriana, intitulada “Ação contra o espírito anti-alemão”.
Os livros chegaram a Kassel de todo o mundo. Embora uma equipa de professores e estudantes da Universidade de Kassel tivesse compilado mais de 70 mil títulos proibidos num qualquer tempo e lugar do mundo, havia uma lista básica de 170 livros proibidos, muitos deles clássicos da literatura, entre os quais se incluem “A Ópera dos Três Vinténs”, de Bertolt Brecht, “Alice nos País das Maravilhas”, de Lewis Carrol, “Don Quixote de la Mancha”, de Miguel Cervantes, “Fundamentos da Teoria Geral da Relatividade”, de Albert Einstein, “Poeta em Nova Iorque”, de Federico Garcia Lorca”, “O Valente Soldado Chveik”, de Jaroslav Hasek, “A Metamorfose”, de Franz Kafka, “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera, “O Príncipe”, de Maquiavel, “Manifesto do Partido Comunista”, de Karl Marx e Friedrich Engels, “Doutor Jivago”, de Boris Parternak, “O Princepezinho”, de Saint-Exupéry, ou “Cândido”, de Voltaire”.
Protegidos por bolsas de plástico para evitar que se danifiquem, os livros serão depois distribuídos por refugiados e bibliotecas públicas de toda a Europa.
Numa altura em que, a par dos métodos tradicionais, novos tipos de censura se abatem sobre escritores e artistas, Marta faz ali um poderoso manifesto contra a intolerância, em nome da democracia. Em nome do direito a cada um, em qualquer momento e em qualquer parte do mundo usufruir do seu direito a escolher as suas próprias leituras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário