Faça um favor a si mesmo: lave louça
No dia em que saí de casa, minha mãe não me chamou pra conversar e, olhando fundo nos meus olhos, enquanto acarinhava meus cabelos, disse que pediria a deus para iluminar meus passos.
Não.
O que ela fez foi meter uma Scotch-Brite na minha mão e dizer “vem, que você precisa aprender a lavar louça”.
Isso foi há mais de dez anos. De lá pra cá, aprendi a dominar _ com mais ou menos maestria _ boa parte das habilidades necessárias para administrar uma casa. Mas lavar louça segue sendo a mais importante delas, a mais necessária, requisitada até. Eu diria quase um diferencial digno de botar no lattes.
E por uma razão muito simples: ninguém quer lavar a louça. A Raissa tem razão quando canta que todo mundo quer salvar o mundo mas ninguém quer ajudar a mãe a lavar a louça.
Vejam que eu não disse “ninguém gosta”. Eu disse ninguém quer. Ninguém se voluntaria para esse ato. Ninguém se apresenta para a missão. Eu entendo. Diante do estágio anterior, que é a magnífica experiência de criar um prato digno de derreter o Monte Olimpo, lavar louça é tarefa menor, desimportante, não confere status, não rende reconhecimento em rede social.
Ninguém elogia a louça bem lavada. Louça bem lavada é obrigação, não é arte, como é misturar mandioquinha da Amazônia com bobó de figo e ameixas marmorizadas. E nem é sexy (a não ser que você faça isso só de roupas de baixo ouvindo Billlie Holiday, porque Billie Holiday deixa qualquer situação sexy).
Lavar louça é uma atividade considerada tão mordaz que em seu livro “Guia do Solteiro _ Como Fazer da Sua Casa um Confortável Chiqueiro” (Conrad, 2001), o escritor P. J. O’Rourke reparte um curioso método, inventado “pelo roteirista da costa leste Bill Martin”:
Bill compra pratos em caixas nas lojas de 1,99. Depois da refeições ele põe os pratos na pia e abre a torneira até que a água os cubra. Ele esvazia então uma dúzia de caixas de gelatina na água (o sabor favorito de Bill é limão). Quando a próxima carga de pratos está suja, ele repete o procedimento com outra camada de gelatina cobrindo os pratos e copos. Finalmente, quando a pia está quase cheia, Bill põe dois cabos de panelas grandes na última camada de gelatina. Isso permite criar um par de puxadores para que ele possa retirar toda a massa solidificada na pia, enterrá-la no quintal e sair para comprar mais pratos.
É esse o nível de ojeriza que a maior parte das pessoas sente com relação à louça suja. Conheço gente que prefere fazer missão de escolta em joguinho de videogame a dar conta de meia dúzia de pratos melecados. Outros, de caráter duvidoso, param de lavar quando faltam dois ou três dias para a vinda da faxineira.
Pois estão todos errados.
Claro que lavar louça é chato. Mas as tarefas mais recompensadoras nem sempre são as mais legais ou divertidas. Ser um bom músico, por exemplo, exige muito mais horas tentando tocar alguma coisa do que de fato tocando _ mas vai valer muito a pena quando você esmerilhar Pais e Filhos naquele luau em Tramandaí.
E a recompensa da louça é generosa e _ melhor ainda _ quase imediata. Diferentemente de outras atividades humanas, que demoram a apresentar resultado, a lavação de louça brinda o esforço em pouco tempo. Palha de aço e detergente transformam em espelho aquela panela de molho que parecia uma tela do Jackson Pollock; água quente descola em segundos a gordura do refratário; taças cheias de marcas de dedo e saliva ressecada só precisam de uma escovada decente para serem dignas de servirem chefes de estado; algumas horas em água e os pedaços de massa devolvem à forma de alumínio sua aparência original.
Sem contar que a louça nunca mente. Ela sempre vai ser honesta com você. Uma louça bem lavada é sempre uma louça bem lavada. Não existe louça mais ou menos lavada. Você pode enganar todo mundo, menos a louça. Digo mais: uma louça mal lavada é a testemunha impassível da falta de comprometimento e tenacidade que você muitas vezes acaba arrastando para outras atividades da sua vida.
Louça forma caráter e evita o surgimento de barata, amigos. Lavem louça.
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