sexta-feira, 27 de outubro de 2023

ADÁGIO PARA O DIA DOS FINADOS


O tempo vai colocando uma fina camada de poeira nos nomes que um dia nos foram importantes. Ouvindo um adágio lento e solene de Handel, penso em todos aqueles que me ajudaram, na Bahia, nestes últimos 48 anos a moldar aquilo que sou e que continuam vivos na minha memória. A gente se constrói a partir dos outros.

Abro o livro imaginário das lembranças. O primeiro sorriso que reencontro, acompanhado por dois grandes olhos azuis é aquele de Eva Adler, consulesa da Áustria. Preciosa amiga. Estamos visitando Ilse e Hansen-Bahia, na casa atemporal das alturas de São Félix. Agora é a vez de Consuelo Novais, inteligência vestida de elegância, que veio pessoalmente conhecer meu projeto editorial sobre as igrejas de São Francisco, projeto que me seria absurdamente surrupiado.

Vez ou outra ia até Santo Amaro para me abastecer de obras da Zilda Paim. Casa simples, cheirosa e arrumada, bem no centro da cidade. Ela me aguardava com a nova safra de quadros ilustrando a cultura popular do Recôncavo. Quanta paixão habitava esta senhora!

O poeta Ildásio Tavares, gozador e irrequieto, vai subindo a ladeira do Pelourinho. A gente se gostava tipo cão e gato. Acabou escrevendo uma bela crônica sobre minha insignificante pessoa. Perdi o recorte.

E João Carlos Teixeira Gomes, o Pena de Aço, que não hesitou em se deslocar pessoalmente até a sede d´A Tarde para devolverem meu espaço? Sempre de pavio curto, tinha-me aborrecido com uma censura a respeito do plano de saúde Bradesco.

O uruguaio Miguel Huertas, culto e irascível, odiava ser chamado de Miguelito. Dirigindo mal um carro sem marca nem cor nos levava até a casa de fada de Agi Neeser. Ela nos esperava com a primeira caipirinha do dia e na véspera de Natal cantava com voz leve e afinada uns cânticos alemães. Canoas a balançar nas ondas tranquilas de Passé no fundo do fundo da baía. Lá vivia um casal de franceses, Paul Bréziat e Michel Cahen, no meio de uma plantação de bananeiras que pouco e mal produzia. Vez ou outra aparecia o Pierre Verger entre duas viagens a África. Reinaldo Eckenberger veio estudar canto lírico na Ufba. Desafinava. Virou artista visual e acabou ganhando o prêmio Matarrazzo na Bienal de São Paulo. Um ônibus cheio de enormes e inquietantes bonecas de pano.

Na casa do outro lado de minha rua moravam duas irmãs pernambucanas. Nunca soube como pousaram no bairro de Santo Antônio. Neguinha, que nunca casou, costurava belos vestidos de noiva. Nerina era radioamadora. Sua maior vaidade era ter se comunicado com Juscelino Kubitschek. Com elas duas fizemos a decoração da rua para o desfile do Dois de julho. Nunca a grande festa cívica fora tão bela e alegre.

A brisa do fim do dia leva nossas poeiras para muito longe...

Dimitri Ganzelevitch

A Tarde, sábado 28 de outubro 2023

 

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