domingo, 18 de dezembro de 2016

DUAS SEMANAS NA MÍDIA

 UMA COBERTURA EXAGERADA?



Foto: Divulgação/site oficial Chapecoense

A tragédia com o voo da companhia Lamia, que vitimou fatalmente a maioria dos passageiros (delegação da Chapecoense e jornalistas) e da tripulação, completou duas semanas ontem, segunda-feira (12). Setenta e uma pessoas morreram na queda do avião, apenas seis sobreviveram. O desastre e seus desdobramentos reuniram elementos para extensa cobertura jornalística. O acidente segue pautando o noticiário nacional.

Os desastres e suas consequências despertam grande interesse (audiência) do público. No entanto,  matérias dessa natureza, sobre assuntos trágicos, sempre envolvem o limite da ética, não raramente ultrapassado pelos meios de comunicação. Devemos levar em consideração também que outros fatos importantes ocorreram durante a cobertura do desastre e não tiveram o devido destaque na imprensa.

Elementos fortes, valores-notícia
Os elementos que justificam a cobertura midiática de um acontecimento, como a tragédia da Chapecoense, são chamados nos cursos de Jornalismo de valores-notícia. Com auxílio do artigo “Para pensar critérios de noticiabilidade”, da professora Gislene Silva, do Departamento de Jornalismo da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), podemos resumir que os fatos com elementos mais fortes, são aqueles entre os mais importantes e interessantes. “…Na conceituação de Lorenzo Gomis (pesquisador em Comunicação), o importante seria a informação que todos precisam saber e o interessante, uma informação que o público gostaria de saber, uma informação agradável de se conhecer. Os dois conceitos, segundo o autor, cobrem todo campo de valores-notícia…”, escreveu e citou a professora Gislene, em seu texto publicado no periódico “Estudos em Jornalismo e Mídia – Vol II N°1/ 1° semestre de 2005”, da universidade catarinense.
De acordo com o trabalho da UFSC , podemos constatar ainda que muitos valores-notícia elencados no artigo, combinados entre si, motivam o tamanho G dessa cobertura do acidente da Chape. IMPACTO (número de pessoas envolvidas no fato, número de pessoas afetadas pelo fato); PROEMINÊNCIA (notoriedade, celebridade, sucesso/Herói); ENTRETENIMENTO/CURIOSIDADE (aventura, divertimento, esporte, comemoração); RARIDADE(incomum); SURPRESA (inesperado); TRAGÉDIA/DRAMA (catástrofe, acidente, risco de morte e morte, suspense, emoção) e JUSTIÇA (julgamentos, denúncias, investigações, apreensões, decisões judiciais). Todos esses elementos (valores-notícia), escolhidos/pinçados do escrito da professora universitária, se aplicam particularmente à referida tragédia e suas consequências.
A notoriedade do time indo disputar a final de um campeonato internacional, acompanhado de jornalistas proeminentes/famosos; o interesse do brasileiro por futebol; a emoção negativa do acidente aéreo fatal, inesperado/incomum; o suspense pós-tragédia ao acompanharmos os sobreviventes, torcendo pela recuperação deles e a busca da justiça, com a criminalização dos culpados pela queda do avião, são alguns pontos fortes que rondam a tragédia e a cobertura jornalística dela, extensa.
Podemos destacar também a emoção positiva quando vimos o fair play do Atlético Nacional da Colômbia e da sua torcida. Adversários do time de Chapecó na final da Copa Sul-Americana 2016 que não aconteceu, eles abriram mão da disputa do título (a combalida equipe brasileira foi proclamada campeã) e entoaram no estádio Atanasio Girardot, em Medellín, o “vamos, vamos, Chape!”. A galera da Chapecoense respondeu ao belo gesto gritando da Arena Condá: “É campeão!!” As cenas foram emocionantes. Acredito que os familiares e amigos das vítimas gostaram daquelas imagens consoladoras num momento de tanta dor. O escudo do clube catarinense, espalhado nos uniformes de vários times, pelo Brasil e pelo mundo, também chamou a atenção, positivamente, das câmeras e espectadores.
As coberturas das tragédias despertam interesse, dão audiência e colaboram para o sustento financeiro dos meios de comunicação
Ainda que existam cenas positivas nos desdobramentos da tragédia com o avião da Lamia, dentre os fatos que motivaram/motivam muitos textos e a exibição de fartas imagens, o de maior relevância foi, logicamente, o acontecimento matriz. Ou seja, o acidente aéreo em si, negativo e triste. E foi esse fato central que carregou a grande audiência dos meios de comunicação nessa cobertura jornalística.
Dois textos, “O que faz a gente assistir vídeos de acidentes” e “Porque noticia ruim dá tanta audiência“, dos sites megacurioso.com.br e eftbrasil.com.br, respectivamente, apontam supostas razões para a nossa atração por eventos negativos. Não podemos generalizar, achando que todo mundo tem fascínio por acidentes e coisas do gênero. Mas, como exercício investigativo no sentido do “por que as tragédias atraem tanto?”, Maria Luciana Rincón, analista de conteúdo no grupo NZN, escreveu categoricamente no primeiro texto: “…O pior é que, por mais mórbido e errado que pareça, a verdade é que simplesmente não conseguimos resistir à tentação de dar uma olhadinha…” As palavras chaves do artigo são empatia e identificação. Nos dicionários, o significado de empatia aproxima-se de “sentir o que o outro sente”. E é essa identificação que a autora aposta como uma das razões para o nosso fascínio pelos fatos trágicos; “…o que acontece com uma pessoa que tem o corpo estraçalhado em um acidente? ”, “ o que ela sentiu no momento do desastre? ” e “será que ela sofreu?” (…) Pois, quando começamos a nos fazer esse tipo de perguntas, mesmo sem perceber, estamos nos colocando no lugar das vítimas, imaginando como seria se, em vez delas, fossemos nós ou algum ente querido que tivesse passado por aquela situação(…) Essa empatia nos ajuda a entender a nossa própria fragilidade e a compreender que o nosso tempo é curto, além de fazer com que nos sintamos mais próximos das outras pessoas…”, afirma Maria
No segundo artigo, “Por que notícia ruim dá tanta audiência?” , mais voltado diretamente para as questões da mídia, o autor, André Lima (terapeuta, professor e palestrante especialista em desenvolvimento pessoal e profissional), é enfático com relação ao gosto/atração da maioria por morbidades sensacionalistas “… A televisão passa o que as pessoas sentem atração em assistir. Notícias sobre tragédias costumam render semanas. Passam exaustivamente nos jornais da TV, são comentadas em programas de auditório, de fofoca ou de debate e as pessoas gostam de assistir (…) Não adianta colocar a culpa na mídia, pois só permanece no ar aquilo que a população aprova através da sua audiência…”
Sobre a causa do fascínio por acontecimentos trágicos, André, num viés psicológico, vai aos recônditos das nossas emoções. E é bem pessimista, se compararmos o pensamento dele com o de Maria Luciana, que acha empático o fato de gostarmos das imagens sobre desastres. “…O mais importante de tudo isso é entendermos o que nos leva a sentir atração por tanta negatividade. Essa é a razão pela qual estou escrevendo esse texto. Não é para culpar a televisão nem o público e, sim, para compreender o que está por trás desse problema. A negatividade nos atrai devido ao fato de estarmos cheios de pensamentos, crenças, emoções guardadas do passado, sentimentos de tristeza, medo, mágoa, raiva e outros que acumulamos durante a vida e passam a viver no nosso interior formando uma sombra. Essa sombra busca crescer e se fortalecer. Um dos mecanismos pelos quais ela cresce, é através das notícias ruins que alimentam as emoções que guardamos. Em maior ou menor grau, todos nós sentimos uma certa atração por notícias negativas…”, alerta o terapeuta.
Os dois artigos procuram explicar de modo diverso as causas do apreço de muitos por tragédias/acidentes/desastres, mas uma certeza já temos; notícias ruins dão audiência, e essa é medida objetivamente, não deixa margem para dúvidas. Em geral, os veículos de comunicação têm como principal receita financeira as verbas publicitárias. E o valor do pagamento pelos comerciais é diretamente proporcional a visibilidade do conteúdo publicitário, veiculado na mídia. Ou seja, no final das contas, é a audiência o principal sustentáculo financeiro dos meios de comunicação e dos profissionais que trabalham neles. Daí, compreendemos o porque das coberturas extensas sobre os fatos negativos. Elas fazem parte da sobrevivência dos meios de comunicação e da remuneração dos seus funcionários e colaboradores. Isso fica claro no filme Nightcrawler/ O Abutre (2014) – link abaixo.
A editora de um canal de TV em Los Angeles, Nina (personagem interpretada pela atriz Rene Russo), está ameaçada de perder o emprego porque a emissora tem baixos níveis de audiência nos horários em que ela comanda a programação. O que a editora faz então para salvar sua pele profissional? Compra com o dinheiro do canal, imagens das negatividades da vida cotidiana, na mão do freelancer Lou (Jake Gyllenhaal). Ele, desempregado, vive à cata das ocorrências policiais da madrugada para filmar/registrar. Nina pede ao mesmo registros de tudo o que é acontecimento ruim; incêndios , acidentes aéreos, de carro, de trem, ônibus… Ao sentir que ela está em suas mãos, visto que apenas os fatos negativos alavancam os níveis de audiência da emissora, Lou a chantageia sexualmente, alegando que o emprego dela depende do trabalho dele. No filme, as veiculações das matérias sensacionalistas são sempre acompanhadas por dois profissionais da estação. Um deles, está sempre tentando barrar os conteúdos grotescos. A advogada do canal também aparece para colocar os impedimentos legais nas reportagens.
Extrapolação dos limites éticos e outros fatos relevantes não destacados pela mídia.
Até aqui, as extensas e destacadas coberturas jornalísticas aos fatos negativos e seus desdobramentos, como o desastre aéreo ocorrido há duas semanas, foram respaldadas de duas formas. Academicamente, pelos valores-notícias. E também pela necessária audiência (interesse do público), condição básica para o sustento e sucesso financeiro das empresas de comunicação. No entanto, não há apenas aspectos favoráveis à longevidade e preponderância da pauta, “desastre com o avião – foco na Chapecoense”, no noticiário.
As coberturas de uma tragédia como a do último dia 28 de novembro (acidente aéreo fatal), guardam em si falhas éticas, imperdoáveis pra muita gente. Na visão do filósofo Aristóteles, a ética caracteriza-se pelo objetivo a ser atingido, isto é, “que se possa viver bem, ter uma vida boa, com e para os outros, com instituições justas”. Nessa linha aristotélica podemos ampliar para: quais são as nossas responsabilidades pessoais diante do outro?
A partir das definições clássicas, ao analisarmos os conceitos éticos no “varejo” (pontos factuais), aplicados à cobertura do desastre em questão, encontraremos ações “bizarras”, que não condizem em nada com o conceito da palavra ética.
Na TV aberta, Fátima Bernardes, da Globo, no programa “Encontro”, telefonou ao vivo para os familiares dos jogadores da Chapecoense. Sonia Abrão no “A Tarde É Sua”, Rede TV!, entrevistou o vidente Carlinhos. Ele “previu” que um avião cairia até o final deste ano com um time de futebol dentro. O “Fofocando” (SBT) debateu a veracidade da “previsão”.
No caso da entrevista com um familiar da vítima fatal logo depois da tragédia, a ética foi arranhada porque não houve responsabilidade pessoal (da apresentadora e da produção do programa) com o outro. E quem são os outros nesse caso? As famílias, os amigos e os colegas de trabalho dos mortos no desastre do avião. Para a grande maioria, deve ser situação de tremendo desconforto dar depoimento sobre um ente querido logo depois que ele “se foi”, expondo suas emoções íntimas e negativas para milhões de telespectadores. É óbvio também que as pessoas enlutadas não gostaram de ver ou saber do vidente falando sobre sua previsão, tampouco o debate sobre a profecia. Se por um lado, como já foi colocado aqui, existiu nesses programas, o atendimento ao interesse (valor-notícia) do telespectador em ser informado sobre o que cercou a tragédia, houve, do outro, confronto com a ética.
A vida, com princípios éticos, segundo filósofos gregos e romanos, deve transcorrer “num embate contínuo entre nossos apetites e desejos – as paixões – e nossa razão” e as pessoas devem ser justas. As reflexões “como ser justo?” e “como agir de forma a garantir o bem de todos? ” também são propostas. Na questão dos programas da TV, apenas a vontade/desejo/apetite do público foi atendida, o bem dos familiares e dos próximos das vítimas, não. Devemos ter a razão no lugar para entendermos que os parentes e amigos próximos daqueles que morreram vão se incomodar com certas abordagens que envolvem as vítimas do desastre fatal. A cobertura das tragédias pode ser com mais fatos e menos depoimentos das pessoas próximas as vítimas.
A mídia escrita, em jornal e na internet, também não ficou “atrás”. Na coluna F5 da Folha de São Paulo, do dia 29 de novembro, estava escrito; “a queda do avião que matou ao menos 75 na Colômbia nesta terça (29)”. Como assim? Morreram mais quatro pessoas além das setenta e uma e “desmorreram” depois? Falta de apuro rigoroso com a informação que envolve a perda de vidas humanas. O site “catraca livre”, logo após a tragédia, exibiu fotos de alguns jogadores da Chape, alegres, vivos, dentro do avião antes da queda. O contexto da publicação foi: “pessoas que estavam vivas e não sabiam que morreriam logo em seguida”.
Quem deu exemplo positivo foi o canal de TV Esportivo Interativo: “Por respeito e decisão editorial, não vamos entrevistar nenhum familiar das vítimas de hoje. Vamos rezar por eles”, colocou a emissora em seu perfil no Twitter.
A ética sob o ponto de vista macro, no “atacado”, no conceitual, também foi ofendida. Lembremos de Aristóteles:  “que se possa viver bem, ter uma vida boa, com e para os outros, com instituições justas”. Será que ficar vendo, por tanto tempo (duas semanas de cobertura), tanta coisa negativa na cobertura da tragédia do avião, é viver bem? É ter uma vida boa? Em congruência com o filósofo, o terapeuta André Lima, afirmou: “… Pouco vejo jornal na TV, mas sempre que vejo, presto atenção e percebo uma quantidade enorme de notícias que geram um monte de sentimentos negativos, e bem poucas que trazem bem-estar, esperança ou uma mensagem positiva(…) Não bastasse os problemas, tragédias e perdas que temos em nossas vidas pessoais, que já nos causam muita dor, acabamos por absorver o sofrimento de outras pessoas desconhecidas. Isso ajuda a elevar os níveis de estresse, pessimismo, pânico e depressão da população e não ajuda em nada as pessoas que passaram pela tragédia(…) Ajudamos mais a humanidade quando somos mais felizes”. Comentei isso com o filhão Guilherme Drumond Perazzo e ele largou com a peculiar simplicidade infantil: “Pai, ficar vendo coisa ruim, não faz ninguém, nem o mundo mais feliz”.
Trago de volta uma parte da conceituação dos valores-notícias, de Lorenzo Gomis (pesquisador em Comunicação), colocada no início desse texto; “o interessante é uma informação que o público gostaria de saber, uma informação agradável de se conhecer”. Nesse enfoque, podemos questionar: será que o interesse do público pela cobertura das tragédias é algo “agradável de se conhecer?”. Sob determinado ângulo, as coberturas dos desastres podem ser questionadas à luz dos valores-notícias também, não apenas pela ética. Na outra parte do conceito valor-notícia do pesquisador Gomis, ele afirma; “o importante é o que as pessoas precisam saber”. Nessa perspectiva, duas votações na Câmara dos Deputados foram secundarizadas pela mídia, que não deu a devida importância aos dois fatos, na primeira semana da cobertura sobre a tragédia aérea. Foram votadas no dia 29 de novembro, a PEC 55 (dos gastos públicos) e o pacote anticorrupção (o PL 4850). Projetos muito importantes, que podem alterar a vida da população e ela precisa saber disso. Mas, os meios de comunicação em geral optaram por dar mais destaque a tragédia. Aí, meus amigos(as), eu deixo com vocês a pergunta: “Duas semanas na mídia, uma cobertura exagerada?”

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