segunda-feira, 5 de junho de 2017

SEIS HORAS DA TARDE

Fernando Coelho


Seis horas da tarde. Oração pública pelo Pelourinho. O Pelourinho não pode virar entulho. Tombado pela Unesco como patrimônio da humanidade, deságua ladeira abaixo. A enxurrada de incompetência e desacato à moral da cultura do Brasil, promovida, criada, estimulada pelas autoridades da Bahia, leva para a lama, toda a nossa história, a tradição, o imemorial, o urbano vitrificado em casarões coloniais, únicos, num quadrilátero onde episódios de sangue e tributo, vergonha e nascimento de uma cidade, marcam o perfil espetacular, cortado pelo Atlântico, da primeira capital do Brasil. Vi o Pelourinho com Jorge Amado vivo. 

Antes de ACM. Depois da reforma de ACM. 

O mundo marcava encontros de amor, encontros de turismo, encontros de alma, no Pelourinho. Chorei no Afoxé Filhos Gandhi, chorei no Olodum, chorei na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do Pelourinho, onde alguns amigos de copo e vida, dizem que estou enterrado de paixão, chorei na Casa de Jorge Amado, na Casa do Benin. 

Hoje, evoco meu pai Xangô e choro de vergonha. 
Insegurança, sujeira, abandono, tráfico de drogas normal e à vontade, violência a cada esquina, a cada beco, desfalque cruel que homens públicos, de gravata, dão à autoestima baiana e brasileira. Uma cracolândia com berimbaus e capoeira. Autoridades baianas mijam no Pelô. O Pelourinho é patrimônio nacional, não é do governador baiano. Nem do prefeito. Ninguém vai mais ao Pelourinho. 


Quase 200 casas comercias fechadas. Falidas. O IPAC, órgão do governo do Estado, que tinha que ser, por estatuto, guardião do patrimônio arquitetônico, é predador dele, desleixado com a imagem das fachadas e sua manutenção geral, inculto, burro. É agiota. Aluga 160 imóveis sob sua guarda e agora ameaça os comerciantes de despejo. Com a crise e o próprio desprezo do Estado, não há movimento, não se fatura em toda a região do querido Pelô. 


A última, gesto de extrema unção: anunciaram o fechamento das praças de diversão e música, pedaços de resistência. Somente uma voz, de um negro franzino, invencível, incansável, um cidadão honrado, vestido com o sangue e a força do Pelourinho, sai em sua defesa: o meu compadre Clarindo Silva, história viva dali. Por causa dessa luta, reabriram as praças, mas não há programação para o São João. Um absurdo inimaginável. Clarindo anda, se arrebenta, corre de gabinete em gabinete, conversa, discursa, grita, não dorme, para que o trator do Estado não ponha abaixo o que restou do velho, incondicional, imortal, eterno Pelourinho. Clarindo não está só. 

Aliás, está: nenhum famoso baiano, que paga pau, na cara de pau, para aparecer nas televisões do sul maravilha, olha ou diz uma palavra a favor do lugar onde os negros foram sangrados, e que chama a atenção dos olhos esbugalhados do mundo, por causa de um acervo de construções tão rico em arquitetura. Clarindo só conta com ele e com Senhor do Bomfim. 

Peço ao meu amigo Dimitri Ganzelevitch, pele e alma da cidade que vive com medo, que estenda sua generosidade para os passos de Clarindo Silva. O Palácio de Ondina, onde mora o governador, é uma trincheira de atraso, incompetência e destruição da cidadania e da memória do meu povo. 

E só.

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