Uma Carta Privada
para
uma Sociedade Estatal
Salvador é uma cidade estatal. Essa é uma constatação, não uma opinião, e todos sabem disso. Mas como boa parte destes "todos" é também de beneficiários, ou aqueles que sonham em sê-los, vive-se por aqui um estado misto de covardia, hipocrisia e complacência...
É preciso mudar a cultura. E também a Cultura.
Há anos, debato com colegas os malefícios de vivermos à base de editais e contratações públicas (em sua maioria rendendo valores totalmente fora da realidade de mercado). Isso gera diversos problemas:
1. Perde-se a livre concorrência;
2. Perde-se o livre "discurso";
3. Degrada-se o nível dos profissionais da área, visto que o melhor desempenho não é mais pré-requisito para contrações e sim as amizades;
4. Reduz-se o montante de dinheiro circulante, por motivos óbvios;
5. Cria-se um núcleo de "Burocratas das Artes", meia dúzia de produtoras com "grande" influência em órgãos públicos, que se tornam dessa forma os definidores do que é ou não é cultura no lugar da sociedade livre;
6. Diminui-se, como consequência direta, a diversidade cultural da sociedade, pois os verdadeiros "criadores" e "fomentadores" de Cultura devem se moldar às regras das produtoras e dos editais. Não à toa, os novos grupos que surgiram por aqui nos últimos anos são todos um "Mix De Símbolos e Ritmos", basta ler a regras dos editais públicos de hoje para entender os reais motivos do formato desses projetos. Para onde foram os projetos de Reggae, Rock, Salsa, Samba etc, sumiram??? Onde está o tão criativo e crítico Teatro Baiano??? Agora, para fazer arte por aqui você tem que ter um Projeto com "X" características e com discurso politicamente correto. Caso contrário, "Papai Edital" não lhe sustentará;
7. 99,9% do financiamento adquirido por essas produtoras é destinado para projetos que não necessitam desses recursos. Projetos classificados como "de mercado", ou seja, projetos com forte apelo comercial. Para a falta de noção atingir níveis da mais pura canalhice, em grande parte desses eventos contemplados ainda cobra-se ingresso. Logo, o bolso desses projetos, que se bancariam satisfatoriamente com bilheterias e outros meios de venda, são os maiores beneficiados. E por que tenho certeza disso? Por que sou um dos donos da Scambo e é assim que vivo há mais de 15 anos, apesar de algumas brigas internas para trabalharmos de outras formas. Acreditem, os assédios são muitos e nem todos resistem...
Nas várias fases que a Scambo passou, desde o seu início o que mais ouvíamos era: vcs precisam de um empresário com "entrada" nos editais. Era como aquele conselho dos pais: por que você não faz concurso público? Oras, por que eu quero trabalho com ARTE, e para fazer arte é preciso estar livre, e para estar livre não posso estar vinculado à dinheiro público. Caso contrário só me restaria o discurso hipócrita. Com a visão empreendedora de Graco e o trabalho na imprensa de Edu Chapeu (dois integrantes da Scambo), lotávamos todo domingo um bar chamado Anexo no Rio Vermelho. Em 1 ano, com o sucesso desse projeto, novos bares e casas de show abriram no bairro (novos empregos e renda), aumentamos nosso público e assinamos contrato com uma gravadora. Nesse momento várias "Produtoras" entraram em contato com a gente falando:
“Agora que vocês têm uma gravadora, se vocês fecharem com um empresário que ganhe editais vocês vão estourar”.
Com medo de "estourar" e ficar em pedacinhos preferimos parcerias com pessoas empreendedoras como nós, Tio Bill, Romeninho, parcerias com a banda Mosiah. Passamos de 600 pagantes no Rio Vermelho para 2000 em casas de Show de Salvador e 10.000 em grandes eventos particulares em Lauro de Freitas - Todas essas casas de evento fecharam... Why??? - Bilheteria e muito trabalho, mas como todo empreendedor, corríamos riscos. Um dia ganhávamos, no outro perdíamos. Ora, assim não é também a vida???
Em 2010, através de nosso produtor Fernando Maia, desbravamos o interior baiano, e de novo lá estava ele, El Grande ESTADO. Não existiam contratantes capacitados para nos contratar, tudo era feito através das prefeituras. Fernando então desenvolveu uma rede de contatos, e com muita paciência e, de novo, TRABALHO, começou a capacitar pessoas que tinham interesse e vocação em trabalhar com eventos. Em um ano e meio, já viajávamos por todo o interior baiano tocando em eventos particulares, de qualidade, gerando trabalho e renda para centenas de pessoas, através dessa mesma rede que qualificamos, em cidades como Ilhéus, Itabuna, Itacaré, Jacobina, etc.
O tempo passava, já sustentávamos nossas famílias há anos nesse formato e as conversas não mudavam:
"Vocês uma hora não vão se sustentar com a bilheteria se não arranjarem um empresário com contatos públicos, quem avisa amigo é".
Uma parte da banda apoiava para que mudássemos, mas a outra era mais forte. Continuamos por 3 anos consecutivos lotando casas em salvador e no interior baiano.
Em 2012 gravamos um disco acústico para tocar em Teatros e abrir nosso leque de formatos de shows, mas ao visitar os Teatros para fechar pautas, adivinha quem encontramos??? O ESTADO, agora na forma de Hamlet. As pautas eram caríssimas, totalmente fora da realidade de quem trabalha no mundo real, com público real, com bilheteria... Apenas uma das muitas diretoras e diretores de teatros que visitamos teve a coragem de "mandar a real" e ouvimos mais um conselho:
"Vocês têm que entender que o valor alto da pauta é por que ninguém faz Teatro na Bahia sem edital ou dinheiro público. Escrevam um edital e vocês terão portas abertas aqui com a gente".
Bom, fizemos nosso show acústico onde deu e, na maioria das vezes, mesmo com o Teatro lotado, só conseguíamos pagar a maldita pauta. Abandona-se o acústico e queima-se os neurônios para uma nova ideia artística e viável, assim fizeram os empreendedores que desenvolveram este celular que agora digito esta carta.
Eis que surge, agora do nosso lado, alguém tão poderoso quanto o ESTADO, um tal de financiamento coletivo. Estudei esta ferramenta durante um tempo e em 2016, confiando no nosso público criei um Crowdfunding para gravação do novo disco da Scambo. Dois meses de muito trabalho, buscando sempre os melhores profissionais como parceiros, mas também ouvindo conselhos, dessa vez eram os donos de estúdios de gravação:
"Rapazzzzz com o nome que vocês têm aqui na Bahia, se vocês escreverem um edital pra gravar este disco vocês ganham tranquilamente e ainda sobra um dinheirinho pra curtir. Eu até tenho um primo que aprova vários editais com facilidade, querem o contato?".
Não...
Crowdfunding feito, 64 mil reais arrecadados, pagos pelos fãs, e o sexto financiamento coletivo mais bem sucedido do país em gravação/disco...
Acreditem esta realidade está estrangulando nossa diversidade e nosso potencial artístico. Ora, nada deixa mais claro os reais motivos de todo o rebuliço que a classe artística tem feito com as possíveis diminuição do Estado na vida pública, e também, o por que de grande parte da população começar a rejeitar a demagogia desses artistas.
Aos Liberais e pessoas que TRABALHAM sério e por isso querem menos Estado em suas vidas, penso que com esse funcionamento na cultura jamais alcançaremos esses objetivos... Como disse o Andrew Fletcher (artista britânico do século XVII): "Deixe-me escrever as canções de meu povo , e já não me importo com quem escreverá as leis."
Precisamos urgentemente entender essa frase.
Aos colegas artistas que me envergonham a cada dia, desejo-lhes todos editais do mundo. Aos fãs da Scambo, conto com o reconhecimento e o dinheiro de vocês sempre que, por livre e espontânea vontade, decidirem comprar nossos produtos. Aos projetos e bandas que se rastejam na fila dessas "Produtoras Estatais", meus sinceros beijos privados..."
**** Alexandre Abreu é guitarrista e fundador da banda Scambo
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