A Quinta São Mateus, em Dafundo, perto de Lisboa e mais ainda perto do soberbo palácio dos duques de Lafões, é uma casa nobre portuguesa com certeza, como muitas que se construíram nos arredores da capital, logo após o terremoto de 1755. O estilo pombalino, com seus elegantes azulejos e seus telhados achinesados, cantos levantados lembrando pagode, abriu caminho a uma forma de vida mais humana e sofisticada. Um amplo portão emoldurado de hera, avermelhada quando chega o outono, convida o visitante a entrar.
Lá vive, há várias gerações,
uma família franco-portuguesa com um pé nos Açores, outro
Nicole, dona da casa, é uma
Calmann-Levy. Baixinha e redondinha, traços finos de boneca de porcelana, gosta
de receber. Um dos filhos, o Alain, mais conhecido como Pitou, é o compositor
que levará Amália a mudar os rumos do fado.
Esta noite é especial, todos os familiares e amigos mais íntimos estão presentes. Entre eles o pintor americano Edwin Dorris, Colette de Jouvenelle, filha da famosa escritora Colette (Gigi), Manolita de Bogearde, baronesa de físico avantajado, cujo filho Othon seria mais tarde embaixador da Bélgica em Brasília e alguns outros, eu entre eles.
Uma imensa árvore de Natal
enfeita a sala de jantar. Na longa mesa, a baixela mais fina brilha sobre linho
bordado. Brilham também as pratas, os cristais, o jacarandá dos antigos móveis,
os espelhos. Debaixo da árvore, cem presentes esperam seus destinatários. Serão
distribuídos depois da ceia.
Esta respeita todas as
tradições natalinas, desde o bacalhau até o peru; foie-gras e champagne
incluídos. Sei que são extremamente abertos e generosos. Mesmo assim, judeus, e
o esplendor desta encenação natalina não deixa de me perturbar.
Permito-me fazer uma pergunta
neste sentido a Nicole. Responde-me com tranquilo sorriso: “É que Natal é uma
festa tão bonita! ”.
Não há como não concordar. Festa familiar, amical, intima, ao redor da lareira onde canta a lenha a queimar. Gostoso cheiro a pinheiro quando alguma velinha se aproxima por demais da ponta de uma agulha, conversas calmas, crianças absortas nos novos brinquedos...
Os anos passam. Na casa de José
Pio e Nancy, em Araras, perto de Petrópolis onde fui passar memorável fim de
semana, abro “The Orientalist”, biografia de Lev Nussimbaum, judeu convertido
ao Islã e, sob o pseudônimo de Essad Bey, autor de sucesso na nascente Alemanha
nazista.
Na descrição tão poética
quanto histórica de Kabu, onde as noites são pontuadas e iluminadas por
estranhas chamas saídas da terra, o que mais tarde fará a fortuna petrolífera e
a consequente falência política de seus habitantes, descubro um emaranhado de
culturas e credos.
Minha atenção de repente é atraída por uma foto da infância daquele garoto destinado a uma vida ímpar. Ao pé de uma alta e suntuosamente enfeitada árvore, um grupo de mais de cinquenta crianças está posando para o fotógrafo. È o Natal de 1913. Noto as vestimentas ricas, algumas típicas do Azerbaijão. Mas é a legenda que desvenda como uma resposta ao Natal português de 1957. Estas crianças, tão sossegadinhas na espera do passarinho, são judias, muçulmanas e cristãs. Todas unidas neste Natal que é uma festa tão bonita.
Abandono o pesado livro para
contemplar a natureza ainda intocada à volta da casa da serra. Divago sobre
outros possíveis caminhos na História deste mundo, sempre tão maltratado pelas
ambições humanas. Quantas oportunidades perdidas, quantas vidas sacrificadas
por resultados tão pífios...
Hoje, de nossas árvores de
Natal pingam gotas de sangue formando obscuros rios que separam povos. Não há
como voltar à fotografia do Natal de 1913.
Salvador, I de janeiro 2008.
Bela crônica Dimitri!
ResponderExcluirP.O.